As sereias têm uma força estranha nos olhos. Existem algumas, mais ousadas, que se esquivam ao mar e passam a viver em terra como mulheres perfeitas sob o disfarce de um manto de claridade que as envolve. Ai daqueles que em suas casas lhes concedam abrigo, ou por elas se deixem cativar...









Fogo






I



Certa manhã, Olíria recusou-se a abrir a porta do quarto na casa onde vivia com os pais. Estava decidida. Não voltaria a abri-la. Dali por diante, a sua vida passaria a acontecer dentro daquelas quatro paredes.

Na primeira manhã, como era de esperar, a mãe de Olíria, surpreendida com a demora da filha, foi ao quarto ver o que se passava.

Olíria ouviu forçarem o trinco da porta. Depois, uma voz:

- Abre! - Era a mãe, apreensiva. -

- Aconteceu alguma coisa? - insistiu. - Ao menos podes falar...

Dentro do quarto, Olíria continuava estendida sobre a cama, mirando as unhas dos pés.

- Mete-te na tua vida - respondeu Olíria, com secura. Pouco depois, ouviu a mãe afastar-se com passos que pareciam os de um gato surpreendendo a mornaça do soalho.

Olíria voltou a meter-se entre os lençóis, puxou a roupa da cama até ao queixo e prometeu de novo a si mesma que não voltaria a abrir a porta do seu quarto. Diriam que estava louca, mas tanto se lhe dava. Só queria ficar no seu espaço, abrir a janela que dava para as traseiras, olhar as águas revoltas para além das rochas...

A sua casa ficava mesmo sobre o mar, à beira dos rochedos. Não queria saber de ninguém, não queria ouvir nada. O tempo havia de passar. “Que passasse”, pensou Olíria com os lábios apertados sobre a dobra do lençol. “É isso mesmo, que passasse o tempo...”.

Não estaria só na sua aventura. Tinha a companhia de Barba Branca, que havia de olhá-la e ouvi-la. Barba Branca era um retrato. O retrato de um velho com o qual Olíria não tinha problemas. Não constava que alguma vez um retrato tivesse importunado alguém. Um retrato não emitia palavra. Apenas ouvia. E, quem sabe, talvez Barba Branca, com os seus olhos fixos e provocantes, fosse mesmo capaz de apreciar Olíria... Chamavam-lhe Barba Branca, mas o seu verdadeiro nome era Roberto. Morrera há uma série de anos. Diziam ser tio-avô de Olíria. Tinha uma expressão calma no retrato, mas por trás dessa aparente serenidade podia adivinhar-se um vigor felino na alma desfeita. O que não surpreendia, tendo em conta a fama do seu espírito aventureiro.

Barba Branca olhava Olíria de alto a baixo com olhos de vitral meio fechados. A partir de agora, estariam sempre juntos, fechados no quarto. Poderiam falar do que quisessem que ninguém teria acesso aos seus diálogos. Às vezes, Olíria tinha a impressão de que Barba Branca acenava ligeiramente a cabeça no retrato, sinal de que a compreendia melhor que toda a gente.

Não pensem que Olíria tinha grandes razões para justificar a sua decisão de se afastar definitivamente do mundo. Nada disso.

Olíria estava apenas farta e não queria que a aborrecessem. Depois, havia o desejo de uma relação exclusiva com Barba Branca. Ou com alguém que o velho lhe fazia lembrar. Na prática, ia tudo dar ao mesmo.

Pouco lhe interessava o que os amigos iam pensar da sua atitude. Pouco lhe interessava o que iam dizer os conhecidos, a família, os pais. Tinha vinte e quatro anos, era solteira, chamava-se Olíria, encerrara-se de vez no quarto onde sempre tinha vivido e pronto.

Estava bem com Maida e com o pai Jusa. Crescera sem grande incidentes, tivera uma infância normalíssima, rodeada de cuidados, e uma adolescência sem sobressaltos. As suas relações com a família nunca haviam fugido aos padrões tradicionalmente aceites pela sociedade. Estava bem com toda a gente. A esta hora, os amigos ainda nem sonhariam o que tinha firmemente decidido sem dar explicações a ninguém. Esperava que não dramatizassem a sua atitude ao ponto de recorrerem aos serviços da autoridade para a arrancarem do seu quarto. Por mais comentários que viessem a fazer sobre a sua atitude, Olíria não encontrava qualquer estranheza no seu comportamento. Era livre de querer ficar para sempre dentro do seu quarto. Quando saía à rua, só via rostos apáticos; corpos doentes, amarelecidos e sem esperança. Esperança ia criar ela agora que decidira abandonar tudo.

Além do retrato de Barba Branca, do lado esquerdo da sua cama, havia um outro quadro com vários corpos tipo borrões, mirando-se, sem se verem. Era o original de um pintor londrino com quem fingira estar interessada em ir para a cama. E a verdade é que fora mesmo, embora ele não tivesse conseguido tanto quanto esperava. Olíria arrepiara-se ao vê-lo despido. Achou que não tinha graça nenhuma ver um homem naquele estado. E recuara no último minuto. Para desespero do pintor.

A cama de Olíria constava apenas de um colchão sobre um estrado de madeira. O roupeiro era uma abertura na parede encoberta por um cortinado de pano cru. Tinha roupa bastante para vestir nos próximos tempos.

Maida ainda não devia ter percebido as suas reais intenções. Mas acabaria por aceitar a sua decisão. Jusa também faria um esforço e Olíria só desejava que o pai se deixasse ficar dentro dos limites do bom senso.

O mar também não era indiferente à decisão de Olíria. O facto de estar tão próxima dele fazia com que ela se sentisse mais livre do que nunca. Abriria a janela sempre que lhe apetecesse e deixaria o cheiro a sal invadir as paredes do seu corpo. E as do quarto. A sua janela dava para um quintal de curtas dimensões após o qual só havia rochedos, abismo e mar. Ela gostava de ouvir as bulhas dos rapazes nos dias em que vinham espalhar musgo para secar sobre as pedras.

Tentando preparar-se para a solidão que a esperava daí em diante, Olíria pensava na quantidade de situações com que poderia distrair-se: da janela do seu quarto veria o céu. À noite as estrelas. De dia, as nuvens (quando as houvesse). Os barcos passariam no horizonte como bolas de sabão deslizando nos sonhos. Veria gaivotas com os bicos rasando a pele das águas lá ao fundo, pássaros esvoaçando do outro lado da vidraça e pousando no parapeito da sua janela.

No terreno que ficava nas traseiras da sua casa, o pai, Jusa, plantara uma laranjeira. Em criança, Olíria subira muitas vezes àquela árvore acompanhada pelas crianças da vizinhança. Era sempre a primeira a atingir o ramo mais alto. Ah, mas tanto que já acontecera depois disso. O que importava era que, finalmente, conseguira separar-se de um tipo de vida em que não se sentia bem. Olíria tinha horrores à hipocrisia, aos risos desmaiados, às formalidades, aos jantares em restaurantes com toda a gente a falar baixinho. Nessas alturas, só lhe apetecia berrar, partir mesas e cadeiras, espetar garfos nos olhos cínicos que a rodeavam.

Quando estava com os amigos, nem sabia que dizer. Eles falavam sempre do mesmo estilo de coisas. Assuntos de pouco interesse. Ela não acreditava que houvesse alguma coisa para além do amor puro.

Para quebrar a rotina, Olíria estava disposta a recriar os seus dias. As pessoas submetiam-se com a maior facilidade aos mais ridículos e desencorajantes padrões de vida. A última festa a que fora em casa de Thomas significara o corte total entre eles. Thomas nunca entendeu que Olíria só tinha amizade por ele. O facto de ela ter feito várias tentativas de irem para a cama não queria dizer que estivesse à procura de uma relação afectiva normal. Thomas estava sempre a dizer que gostava muito das mãos de Olíria. Não se fartava de dizer que se sentia estranhamente atraído por elas.

Aí vinha Maida, outra vez, com passos cuidadosos, culpados, sobre o soalho.

- Estou à espera - disse a mãe do lado de fora da porta, enquanto forçava o puxador. - Porque te fechaste no quarto? - teimou. - Diz qualquer coisa.

Mas a resposta não veio. Maida estava nervosa. Porque ao afastar-se no corredor já não parecia um gato sacudindo o silêncio das horas sobre a madeira. Agora, podia bem falar-se de uma espécie de aranha, calculando escrupulosamente cada passo que vinha a seguir.







II



- Há três dias que Olíria não sai do seu quarto - disse Nemo. - A mãe está desesperada e pôs a notícia a correr.

- Não me surpreende - comentou Thomas. - Olíria é esquisita, como já vos tinha dito. É capaz de tudo para atingir uma ninharia. Mas tem coisas interessantíssimas. A sua personalidade mistura o ridículo e o genial da maneira mais equilibrada possível. Por isso ela é um corpinho de surpresas. Ainda sentes alguma coisa por ela? - perguntou na direcção de Vabor, que baixou os olhos, timidamente, como se à procura de uma resposta desanuviadora nos sapatos. Meteu a mão direita no bolso. Permaneceu calado e sorriu contrafeito.

- Confesso que não esperava tal atitude de Olíria - disse Nemo. - Desde miúda que se destacava nas brincadeiras com os rapazes. Levava a melhor sobre todos aqueles que a desafiavam para qualquer traquinice. Sempre pareceu muito saudável. Fazíamos corridas de bicicleta e Olíria pedalava como um diabinho deixando para trás todos os concorrentes. Quando avistávamos a meta (que era uma árvore na beira da estrada ou um poste de luz) já ela lá estava sentada a descansar, muito corada do esforço, com os olhos bem abertos e os cabelos despenteados sobre os ombros. Penso que Olíria deve ter segredos muito grandes dentro de si. Notaram nos últimos tempos? Estava sempre absorta e distante. Mas nunca previ que viesse a fechar-se de vez num quarto. Não consigo entender as razões que podem levar uma mulher bonita a isolar-se daquela maneira. Ainda por cima, Olíria não parece ter complexos nem traumas de maior.

- Queres outro café? - perguntou Thomas a Vabor, que respondeu afirmativamente com a cabeça.

- Tudo bem? - disse o empregado com um sorriso aberto. - Mais dois cafés? Sim senhores. Mais nada? - e voltou costas.

Na mesa em frente, um homem que aparentava uns cinquenta anos de idade, lia o jornal, acompanhado por uma menina que comia um gelado.

- Que é que foi? - ouviu-se a menina perguntar.

- Nada - respondeu o homem, abafando a tosse com a mão.

- Quem te disse que eu sentia alguma coisa por Olíria? - perguntou Vabor, finalmente, a Thomas, que olhou para o balcão, onde já fumegavam os cafés à espera que os viessem buscar. A seguir, olhou para a porta de saída que iluminava a tarde.

O homem da mesa em frente dobrou o jornal e olhou para a menina.

- Nada - voltou a dizer como se estivesse inquieto, enquanto a jovem metia à boca as últimas colheradas de gelado, limpando os dedos pegajosos no guardanapo de papel e fazendo sinal ao empregado.

- Quero pagar - disse.

- Pago eu - disse o homem do jornal.

- Agora é a minha vez, Nino - replicou a miúda com desembaraço.

- Guarda a esperteza para outra ocasião.

Quim recebeu uma nota das mãos da menina e retirou-se. Na outra mesa, seguindo o exemplo de Thomas, Vabor ausentava os olhos no sentido da porta, fazendo-os vaguear por entre as pernas das mulheres jovens que atravessavam a claridade da rua. Quim veio por detrás silenciosamente e fez adeus com a mão a um palmo do nariz de Vabor.

- Um dia destes está cá fora - disse Quim maliciosamente.

- Quem? - perguntou Thomas como se o caso fosse com ele.

- A moça sai um dia destes...

- Não estava a pensar nela - argumentou Thomas.

- Quem são? - Perguntou Nemo ao empregado, desviando o olhar para o homem do jornal e para a jovem que o acompanhava.

Mas Quim limitou-se a encolher os ombros e voltou para o balcão.

- Penso que sei o motivo porque Olíria se encerrou no quarto - disse Vabor.

- Não gosto de especular, mas é evidente que a sua afeição por Barba Branca tem a ver com atitude tão estranha.

- Isso não faz nenhum sentido - contrariou Nemo. - Os retratos não se sentem atraídos por mulheres. É mais provável que a sua decisão tenha a ver com o mar e o cheiro a musgo.

- Está a faltar-nos aqui qualquer coisa - disse Thomas. - Encontrei Olíria muitas vezes a falar sozinha...

- Arrisco-me a pensar que ela se fartou de te ouvir tecer comentários sobre as mãos dela e que isso foi suficiente para se fechar no quarto - disse Nemo a Thomas com voz brusca.

Vabor entornou a cabeça para trás e sorveu a última gota de café. Gostava de saboreá-lo assim frio com o doce granulado no fundo da chávena.

- Não venhas com tretas - respondeu Thomas, enquanto deixava duas moedas na mesa e saía sem mais palavras.

Nesta altura, o homem do jornal já se encontrava do lado de fora da porta. Portanto, na zona iluminada. A menina quedara-se a seu lado e olhava para o outro lado da rua. Thomas passou por trás deles e caminhou a passos largos para a esquina próxima. A sombra de Thomas foi o que chamou a atenção da menina.

- Tens alguma coisa? - perguntou o homem do jornal.

- Não - respondeu Ana e correu para a esquina, deixando-se ficar parada a olhar Thomas, que se afastava decididamente. Nino lia a última página do jornal.

- Enquanto vou à casa de banho, pede-me um Porto - disse Vabor empurrando a cadeira.

Vabor era um tímido. Todos sabiam o que sentia por Olíria. E ele sabia que todos sabiam. No entanto, ainda perguntara a Thomas o motivo da sua observação.

- Olha, Quim, traz um Porto - pediu Nemo em voz alta para o balcão.

O empregado veio trazer a bebida à mesa e perguntou a Nemo se Vabor sabia a história do tonel. Fez a pergunta ainda curvado e com os dedos fortes na base do copo.

- Claro que sabe - respondeu Nemo. - Já era sem tempo de se pôr tudo a limpo. Thomas e Vabor comportam-se como desconhecidos um para o outro quando, afinal, têm tanto em comum. E que pedaço de carne ela é. Olíria é tão boa que dava muito bem para os dois. No fim de contas, abandonou-os sem apelo e fechou-se num quarto miseravelmente.

- A história da adega e do tonel não é a brincar? - perguntou Quim.

- Garanto-te que é sério...

- Ainda tenho as minhas dúvidas que ela te tenho feito tudo aquilo.

Nemo voltou-se para trás e viu Ana recortada na claridade com o olhar estendido para onde Thomas desaparecera.

- Então, não sabes quem é? - perguntou Nemo.

Mas Quim tinha ido servir outra mesa, guiado pelo inseparável bigode de carvão.







III



- Não fiques com a ideia de que estou a desconsiderar a tua presença - disse Olíria a meia voz para barba Branca. - Nem penses. Se ao falar pareço dar mais atenção ao vazio é porque te amo de tal maneira que para mim representas tudo neste mundo.

Barba Branca era as casas, os rios, a chuva, as manhãs de sol, as fases da Lua. Significava a totalidade do ser. Sabia que ele estava triste. Mas só lhe pedia uma coisa. Que não falasse. O seu acordo era para manter. Que saltasse, mexesse, dançasse, fosse a correr à janela. Que olhasse o mar, as pedras, o musgo. Que a ouvisse, olhasse, beijasse. Que sentisse a sua língua macia. O velho do retrato era um sentimental.

Ao fim de uns breves segundos de silêncio, Olíria pediu a Barba Branca que se aproximasse. Deixou claro que ninguém os criticaria, nem apontaria a dedo às carícias que trocassem. Depois, perguntou-lhe a opinião sobre um vestido que fora buscar ao guarda-roupa.

- Já estava farta da camisa de dormir - acrescentou. - Parece-me que gostarias de ver as minhas coxas sob o tecido fino - disse com um sorriso malicioso. - Mas não deixes que o desejo se esgote tão depressa. Serei toda tua. Entregar-me-ei no momento certo. Sem reservas...

Olíria aproximou-se de Braba Branca, sentindo cócegas só de imagina-lo vivo. O retrato cheirava a homem e ela sentiu que era atravessada pela sombra de um olhar indefinido.

Nesse momento, ouviu-se passos no corredor. Mas Olíria não interrompeu o que estava a fazer. Não queria ouvir. Aqueles não eram os passos de Maida. Esperou, a ver se alguém batia ou dizia alguma coisa. Talvez fosse o pai. Tinha quase a certeza de que seria ele. Alguém deu a volta ao puxador e afastou-se pouco depois. Olíria sentiu-se segura por ninguém poder imaginar o que ela fazia naquele momento. Jusa era incapaz de pensar que ela fosse capaz de tais façanhas. Confiava demasiado nela. Não tinha a mais pequena ideia da íntima relação que a ligava a Barba Branca. Guiada pela intuição, foi à janela e debruçou-se no parapeito. As suas pernas descobriram-se à medida que o busto se apoiou nos braços. Ao olhar para baixo deparou-se com algo que estaria a acontecer na laranjeira. Foi um curto momento. Como se não conseguisse suportar o que via, meteu-se para dentro e fechou as portadas da janela. De repente, o quarto pareceu um jazigo.

Era de prever aquela atitude da parte de Jusa. Qualquer ser humano era capaz de coisas descabidas. Muito mais Jusa. O seu gesto fora tão elucidativo que nem precisara de dizer o que quer que fosse.

Olíria começava a ter a impressão de que Barba Branca poderia fraquejar, esperando que fosse ela a resolver tudo. Em certas ocasiões, tinha a nítida sensação de que ele não conseguia assumir uma atitude forte e corajosa. Nem sequer para a defender. Pareceu-lhe que o retrato chorava. Seria possível? Barba Branca tinha morrido há tantos anos!

Jusa já devia ter voltado para dentro de casa. Era natural que ficasse perturbado com a situação de Olíria. Não era um homem perfeito. Desconhecia o sentido global da atitude da filha. Mas ela seria firme, com o apoio de Barba Branca. Se podia ficar eternamente dentro daquele quarto era porque contava com a companhia de alguém experiente, sensível e terno. De contrário, não podia imaginar-se boiando no vazio. Era necessário que Barba Branca controlasse as suas emoções. Porque só agora tinham começado a aventura de viver juntos. Não podia haver dúvidas sobre o amor que os unia. Ela não estaria constantemente a repeti-lo. Barba Branca era a sua liberdade, a fonte dos seus desejos mais secretos e íntimos. Tinha dúvidas sobre a realização integral dos seus objectivos. Era decisivo não perder a lucidez. As pessoas estariam já a considerar o seu comportamento como uma verdadeira loucura. Em breve, estaria posta de lado. Mas achava que nem assim ficaria esquecida. Aproveitar-se-iam do seu gesto de automarginalização para ocupar as conversas. Olíria seria motivo de apaziguamento na feroz rotina dos seus amigos. Seria útil, assim. O que estava a fazer era muito importante, nem que fosse só por isso. O seu objectivo principal era estar com ela mesma, através de Barba Branca. Viver de corpo inteiro. Desvendar as suas mudas interrogações. Para libertar os seus sentimentos de todas as teias. Para que não se esgotasse o coração.

Olíria foi à janela, de novo. Espreitou cautelosamente por uma frincha de luz marcada no seu rosto. Sorriu. A janela abriu-se e o corpo dela ficou repleto de luz. Olhou para a cama atrás de si e viu que Barba Branca estava no sítio habitual. Puxou o trinco da janela, os cantos da sua boca subiram, descendo a seguir. Uma aragem tomou conta de Olíria, fazendo descer pelo seu corpo um duche imprevisto. Pôs-se a olhar a linha azul e longínqua da água. A saliva do mar às borbulhas, como se a visão da terra despertasse o aquático monstro da letargia. Pousou as mãos. Olhou-as. Thomas tinha razão em gostar tanto das suas mãos. Tamborilou com os dedos na madeira, fazendo lembrar alguém a tocar piano. Pensou que Jusa se tinha excedido ao vir cá fora ao quintal portando-se daquela forma diante dela. A seu ver, não se justificava tamanho excesso. Jusa subira à laranjeira, ramo por ramo, sem nunca perder a calma, tendo o cuidado de não partir qualquer ramo. Nem uma folha se desprendeu enquanto subia a árvore. A sua atitude demonstrava, porém, que estava bastante perturbado. Olíria, ao menos, tivera a preocupação de se fechar no quarto, para evitar escândalos junto da vizinhança. Teria Jusa agido daquela forma para chamar as atenções sobre si, distraindo-as de Olíria? Só o facto de toda a gente já saber o que se passava com ela deveria ser suficiente para deixar Jusa fora de si. Em vinte e quatro anos de vida, aquela era a primeira atitude bizarra que Olíria tomava perante a sociedade. As pessoas estavam habituadas ao seu comportamento impecável. Pretendentes para casar nunca lhe faltaram. Portanto, seria natural que ela não se isolasse assim sem mais nem menos. O seu acto fora uma surpresa até para ela própria. Olíria considerava natural que a sua atitude deixasse as pessoas confusas. Mas só ela se conhecia profundamente. Para chegar onde chegara, tivera de passar muitas rasteiras a si própria, tivera que se colocar em muitas falsas situações e esquemas. Pusera-se no corpo dos outros, vivera por eles, sofrera e tivera muitas alegrias. Ao ponto de sentir que estava exausta. Depois de todas essas experiências, contudo, ficara a conhecer-se razoavelmente. Olíria nunca tivera uma primeira vez. Vivera sempre a aprender. E queria continuar a fazê-lo. Barba Branca tinha uma rara intuição para o amor. E Olíria pensava em como deviam ter sido felizes as mulheres que gozaram as delícias da sua cama. Mas não sentia ciúmes. Barba Branca, agora, era um homem novo. O amor era imaginário. E podia fazer acontecer tudo o que se queria. Estavam de novo a escutar à porta. Olíria voltou-se decididamente e disse:

- Afastem-se daqui. Quero estar à vontade, quero estar sozinha. Deixem-me fazer a minha vida. Estou preparada. Não saio.







IV



O homem fechou a porta atrás de si e deixou o jornal sobre uma mesinha no pátio de entrada.

- Que vamos fazer agora? - perguntou ele para a menina.

- Tu é que sabes - respondeu ela. - Não comeces com perguntas tolas. Tira os sapatos como costumas fazer. Eu já te faço companhia.

- Não te demores - disse Nino. - Tenho umas coisas para falar contigo.

Nino sentou-se na cadeira de encosto e reclinou a cabeça para trás, com as mãos entre as pernas e os olhos fechados. Ouviu Ana mexer na cozinha e abrir a torneira. “Foi lavar as mãos”, pensou Nino. “Estavam pegajosas do gelado”.

- Estou à espera - disse ele impaciente.

Ana veio e sentou-se numa cadeira perto de Nino.

- Então, vamos lá... - disse Ana.

Mas Nino continuava de olhos fechados, sem responder. Ana ajeitou os cabelos alourados e cruzou os braços, com visível paciência. Nino mexeu o dedo maior do pé direito, deixando-se estar na mesma posição. Ana continuou à espera. Daí a alguns minutos, ela levantou-se, mudou para outro quarto e foi recostar-se na cama sem tirar os sapatos. Momentos depois, voltou a erguer-se e fechou a porta do quarto. Nino abriu os olhos e, após uns breves segundos de hesitação, foi para o quarto de Ana, sentando-se na beira da cama.

- Conheces aqueles três que estiveram no café mesmo em frente da nossa mesa? - perguntou.

- Não - respondeu Ana. - Porque fazes a pergunta?

- Apanhei-lhes umas conversas por alto - disse Nino. - Não notaste nada de estranho?

- Não...

- Mas foste à esquina ver para onde ia o homem - insistiu Nino pouco satisfeito.

- Não era um homem, era um rapaz.

- Está bem - disse Nino. - Era mesmo um rapaz. - Que idade lhe dás mais ou menos?

- Cerca de trinta e tal.

- Talvez. Os três homens pareciam gozar de uma certa intimidade com o empregado do café.

- Chamava-se Quim e tinha um bigode curioso que lhe assentava bem.

- O bigode do homem não vem para o caso. O grupo dos três desfez-se logo que saímos do café. Não pareciam estar muito de acordo sobre o assunto que debatiam.

- Deviam estar a falar acerca de mulheres, como sempre. Ouvi-os falar de uma chamada Olíria.

- Esse nome não te diz nada?

- Não.

- A mim também não. Mas quando vi aqueles três no café apeteceu-me ficar mais tempo. Só não quis dar isso a entender e portanto reagi de modo contrário ao meu desejo. Neste momento, penso que não devíamos ter saído de lá. Viste para onde foi o homem que dobrou a esquina?

- Deve ter dado a volta ao quarteirão. Mas tenho que reconhecer que não percebo a tua curiosidade. Pareces nervoso. Disseste-me que vínhamos cá para descansar, no entanto vejo-te alterado por dentro. Estás a esconder-me alguma coisa?

- Não. A nossa vinda cá é também uma prenda para ti. Fizeste doze anos há dias...

- Já é noite - disse, cruzando uma perna sobre a outra. - Não sei o que fazer. Acho que vou dar uma volta por aí para conhecer melhor o ambiente.

- Espera, não vás ainda. Temos de falar sobre o que vamos fazer amanhã. Tenciono procurar uns amigos que não vejo há algum tempo. Talvez seja melhor ficares cá em casa.

- Ficar onde? - perguntou Ana.

- Cá em casa...

- Mas isto não é uma casa - volveu ela de forma brusca. - Faltam-lhe móveis, não há televisão, é quase um esconderijo.

- Tu já sabias que isto era quase um esconderijo - replicou peremptório. - Não te ocultei esse facto. Avisei-te das limitações do local onde íamos ficar - acrescentou, com um claro esforço de abrandamento da voz.

- Não posso estar presente quando fores encontrar esses amigos?

- Pronto - disse, aborrecido. - Não faças mais perguntas. Está bem. Podes ir. Não é nada de especial. Amanhã, iremos os dois. E já agora, podemos adiantar um pouco a conversa. Talvez me possas dar uma ajuda. Se voltarmos a encontrar os tais indivíduos do café não te importas de os seguir?

- Sabes que não gosto de fazer as coisas desse modo. Tens um ar misterioso. Não costuma haver segredos entre nós. Começo a ver que me não me trouxeste aqui só para companhia ou por motivos relacionados com os meus doze anos. Andas metido em alguma?

- Nada disso. Tira essas coisas da cabeça. Vieste comigo porque sei que és capaz de te comportar como uma mulherzinha.

- Nunca me disseste que já foste casado! - contestou ela, sem que nada fizesse prever a sua observação.

- Não me parece que isso seja importante neste momento. Se não te disse, foi exactamente por ser uma coisa que pertence ao passado.

- Mas o facto de não mo teres dito mostra que ainda estás ligado emocionalmente a esse passado.

- Pode não ser essa a razão - contrapôs, enquanto apoiava a mão sobre a cama. - Não imaginei que viesses a saber por outras fontes. Ficaste aborrecida?

- Não. Mas podias ter dito...

- Estava à espera que viesse a propósito...

- Mas agora vem a propósito? - disse ela, sem esconder uma ponta de malícia.

- Não. Tu é que te referiste ao assunto.

- Desde que aqui chegaste, noto em ti uma grande diferença de humor. No café estiveste sempre a ler o jornal e não me ligaste nenhuma. Agora, pões-te a magicar coisas acerca dos indivíduos que viste no café, em vez de estares calmo com eu desejava e a situação justifica. Além disso, pedes-me que siga os tais fulanos, em caso de os voltarmos a encontrar. Depois, dizes que não se passa nada de especial. Sinto-me triste com esta confusão toda. Mais valia não termos vindo...

- Não quero ver-te assim. Tu significas tudo para mim. És a minha vida inteira. Sem ti, as coisas deixariam de fazer sentido - disse Nino, enquanto lhe acariciava o sapato no pé.

- Estou disposta a ir contigo para todo o lado, mas sinto que gostas pouco de mim, sobretudo quando falas com esses ares distantes e frios. Sê mais doce e compreensivo.

- Nem sempre consigo dar um retrato exacto de mim mesmo, ou manifestar os meus sentimentos mais profundos. Muitas vezes, sinto-me como que preso dentro do meu próprio corpo. Estar contigo é como se os dias se tornassem repentinamente mais leves e apetitosos. Tens razão. Estou muito marcado pelos tempos que passaram. Estarei sempre vergado à história dos meus dias. A não ser que as coisas evoluam de modo diferente do que tem sido até aqui.

- Isso quer dizer que comigo não te sentes inteiramente realizado. Há mais alguém na tua vida?

- Há muita gente na minha vida. É natural. Não podes aborrecer-te por isso.

- Sabes que me refiro a outra coisa. O que quero dizer é se haverá outras pessoas que tenham para ti um sentido tão grande como eu sei que tenho.

- Não. És a pessoa a quem amo mais. Podes confiar no que digo.

Era noite completa e Ana parecia agora mais descansada com o rumo que a conversa tomara. Voltou-se sobre o lado direito. Nino estendeu-se aos pés da cama. A vida toda entrava naqueles dois corpos, impelindo-os para a frente dos dias. Ou fazendo-os recuar. Como se amedrontados por algo que se não via, andando à volta dentro deles mesmos, qual vela de barco que o vento incha e encolhe, depois, ao sabor das vagas e da espuma.








Corpo






V



O importante, para Olíria, era atingir uma grande imobilidade interior, que não significava indiferença em relação às pessoas. Acima de tudo, estava o instinto de amor. Olíria sentia que tinham acontecido muitas coisas até chegar ao ponto de fechar para sempre a porta do seu quarto. Era incapaz de se expor completamente. E achava que não tinha nada que estar a martirizar os outros por causa do que lhe sucedera, ou não. As pessoas podiam sentir-se enfadadas. Ninguém tinha culpa dos moldes em que a sua vida se desenrolara. Podiam dizer o que dissessem, mas Olíria considerava que Nemo nunca daria com a língua nos dentes. Não lhe interessava, obviamente. Muito menos a Olíria que, por alguma razão, se isolara. Depois, havia o caso de Jusa, que tivera aquele comportamento inadmissível em cima da laranjeira no quintal. De qualquer forma, Maida era quem deixava Olíria mais confusa. Quando via a mãe percorrendo os quartos da casa, era logo assaltada por uma vontade enorme de espirrar. Contraía os músculos da face com todas as suas forças, mas nunca conseguia evitar os espirros. Sabia que Maida nutria especial aversão por espirros. Mas não se controlava e espirrava mesmo. Nessas alturas, então, Maida parava de andar pela casa, fixava-a com os seus olhos verdes cortantes, como se a filha tivesse feito uma grande maldade e, ao fim de uns breves segundos, punha-se de novo a andar como um comandante de tropas. Maida percorria toda a casa ignorando Olíria. E nem com um puxão de orelhas se dignava reprimir os espirros da filha. Nem uma palavra emitia. Limitava-se a atravessar a distância que as separava com o seu olhar verde de fogo. Olíria apenas tinha a certeza de que a mãe não tolerava espirros. Só que os motivos nunca lhe haviam sido explicados. Maida era um vulcão de cólera reprimida que não deixava perceber os seus sentimentos. Mãe e filha nunca se haviam aberto uma com a outra. Olíria por medo. Maida talvez por achar que a filha ainda não era suficientemente madura. Mesmo assim, Olíria achava que a mãe sentia a sua falta desde que decidira encerrar-se no quarto.

No primeiro dia, Maida forçara o trinco da porta por diversas vezes. Depois, viera pela manhã perguntar-lhe o que fazia ela dentro do quarto. Queria saber se estava sozinha ou acompanhada.

Olíria desconfiava que Maida não era corajosa bastante para encarar racionalmente a sua decisão. Devia estar a congeminar pretextos e outras coisas do género. Quando Maida lhe fazia perguntas, agora que estava no quarto, Olíria nunca lhe respondia.

Era frequente Jusa vir logo a seguir. Olíria ouvia-o sentar-se no chão do lado de fora da porta que a separava do resto do mundo. Ele punha-se a imaginar em voz alta as possíveis razões que a teriam levado a isolar-se. Não lhe perguntava nada directamente, denotando ser mais perspicaz do que Maida.

Olíria quase não conseguia deixar de falar com Jusa. Quando o ouvia sentado junto à porta, sentia as palavras correrem-lhe velozes para a boca. Mas continha-se. O pai possuía muito amor dentro de si e o mais certo era Maida nunca o ter compreendido.

Jusa procurava saber o que fazia Olíria no seu quarto. Com que coisas se ocupava. Ma sela não lhe respondia, apesar de lhe apetecer fazê-lo. Por vezes, desatava a falar sozinha, de maneira a que ele a ouvisse. Falava do musgo e do seu cheiro, dos instintos que o sal despertava no seu corpo, dos rapazes aos saltos sobre as pedras húmidas junto ao mar, das suas unhas dos pés, dos joelhos. Ia ao espelho e dizia-se preocupada com as suas orelhas, por terem os lóbulos curtos.

Então, Jusa cala-se. Definitivamente. Olíria ouvia-o erguer-se devagar e sair de junto da porta em bicos de pés. Segundos mais tarde, sobrevinha um longo silêncio, durante o qual Barba Branca adormecia, muitas vezes, como um menino de colo sobre o alvo lençol da parede.

Maida e Jusa costumavam deixar as refeições da filha do lado de fora da porta. Mas ela só recolhia os alimentos depois de ter a certeza de que ninguém se encontrava no corredor. Talvez a espiassem. O que ela não queria era que interferissem na sua decisão. Ao fim dos primeiros dias, Olíria já estava certa de que não recorreriam aos serviços de autoridade declarando-a louca. Olíria considerava, de resto, que não havia quaisquer motivos para duvidarem da sua sanidade mental. Loucos eram aqueles que trabalhavam diariamente e passavam o tempo a comentar sobre as vidas alheias ou sentados diante da televisão. Não imaginavam como era bom estar imóvel, em total isolamento. Olíria tinha fases de maior perturbação, era verdade. Mas quem não as tinha? Levara uns anos a conhecer-se a si mesma e aos outros. Até que chegara a um estado de calma absoluta. Como se à sua volta tudo dependesse do seu controlo. Às vezes, pensava que talvez não fosse ela a estar imóvel, mas sim as coisas em redor. Olhava o que tinha diante dos olhos, sem fazer perguntas, e verificava que as coisas eram exactamente o que via, por dentro e por fora. O exterior de uma coisa ou de uma pessoa exprimia aquilo que ela era por dentro. Portanto, não se restringia à forma ou aparência dos seres. Pela sua forma, sabia o que eram na intimidade. As coisas entendiam-na, as pessoas não.

O cheiro que emanava dos seres tinha muito a ver também com o que eles eram na realidade. Olíria cheirava tudo. A roupa, os móveis, os dedos das mãos, as paredes, as nesgas da janela. Não era uma questão de metafísica. Apenas de sentidos.

O mar estava verde como os olhos de Maida. E a espuma era da cor do creme numa chávena de café. A noite aproximava-se. Os rapazes recolhiam o musgo, carinhosamente, evitando feri-lo. Depois, as mulheres viriam ajudá-los a subir a encosta rochosa. Mães, esposas, irmãs, carregariam o musgo à cabeça, com os rapazes seguindo atrás delas como cães, cambaleando com os pés magoados sobre as arestas das rochas.

O mar ia escurecendo os seus tons esverdeados e as nuvens caminhavam para terra, cobrindo-a por inteiro. As ondas cresceriam, como se pedindo o musgo de volta. Dava a impressão de as nuvens descerem para o mar e as ondas subirem para as nuvens. Assim é que o mar embravecia e as nuvens se rasgavam luminosas sobre a terra.







VI



Thomas tinha um estômago particularmente fraco, o que contribuiu de forma decisiva para que Olíria se afastasse dele. Não era só o pormenor de estar sempre a olhar para as suas mãos, agarrando-as e apertando-as. Havia também um problema com o seu estômago. Olíria até não excluía a hipótese de a atracção que ele sentia pelas suas mãos estar relacionada com a debilidade do seu estômago. Era difícil perceber a relação entre uma coisa e outra, mas ela preferia precaver-se. Por isso, o mandou dar uma volta. A história que se segue foi determinante para o corte de relações entre ambos. Decidiram fazer juntos uma viagem de barco. Um cruzeiro de férias no Verão. Olíria esperou pelo dia de partida com grande expectativa. Não tinha a mínima dúvida de que haviam de gozar momentos inesquecíveis de prazer, alegria e descontracção. Mas estava enganada! Durante a viagem, viveu dias tristes e deprimentes. Sentiu-se culpada por uma quantidade de coisas, embora, no fundo, nada de especial se tivesse passado. De resto, Thomas ainda hoje pensa que Olíria não teve razões para se afastar dele. Só que ela encarava a realidade de outra maneira e acha que fez bem em não continuar a relação. Estava uma tarde esplêndida de sol. O mar calmo, dourado. As gaivotas esvoaçavam em torno do moderno barco em que ambos viajavam. Tinham posto a reduzida bagagem no camarote e corrido para a amurada para sentir o ar fresco. Thomas queria ver a largada do cais, com as pessoas a acenar na hora da despedida. Estava mais bem disposto do que nunca. Olíria poucas vezes tivera oportunidade de o ver assim eufórico. O dia estava quente como se um cobertor gigante os envolvesse naquele momento. Estavam debruçados na amurada, de mãos dadas. O navio levantou ferros e foram-se apercebendo do progressivo afastamento do cais, da terra, das casas, enquanto no porto as pessoas iam diminuindo de tamanho lentamente. As casas pareciam agora pequenos cubos de açúcar e as pessoas eram como bonecos de banda desenhada a dizer adeus. Algumas horas depois já não se via terra. O sol começava a pôr-se, deixando o mar e o céu avermelhados como um campo de cerejas ou como se inesperadamente o navio tivesse atracado no coração do Inferno. Mas um Inferno de assustadora e indescritível beleza. Não se viam golfinhos. O mar já não estava vidrado como na altura em que tinham saído do cais. Embora pequenas, as ondas faziam o barco baloiçar. Olíria sentia-se uma princesa nos braços de Thomas. Quando deixaram de avistar terra, ele perdeu imediatamente a timidez e começou a colar-se a ela. Palpou-lhe as pernas, as ancas, o pescoço, os seios, fazendo-a sentir-se feliz, ao ver correspondido o seu amor. Era como se um grande fogo ardesse interminavelmente dentro dela. Mal sabia Olíria o que viria a suceder pouco depois. Thomas foi aproximando os seus ollhos dos dela, como se quisesse hipnotizá-la. Mas o que aconteceu foi que ele a beijou na boca, ali, sem mais nem menos. Era a primeira vez que fazia tal coisa. Olíria sentiu o prazer alastrar por todos os cantos do seu corpo. E correspondeu ao beijo de Thomas, embora tivesse ficado coma impressão de não ter aberto a boca suficientemente. Thomas pressionava os seus lábios de forma violenta contra os dela, massajando-lhe a garganta e o pescoço desajeitadamente com os dedos. Foi um momento quase irreal que ainda hoje ela mantém gravado a ferros na memória. Quando interromperam o beijo para respirar, Olíria reparou que Thomas tinha perdido a alegria subitamente. Viu-o pálido e pensou que talvez estivesse aborrecido por ela não beijar tão bem como ele desejaria. Tomou-o nos braços e fingiu embalá-lo como a um menino, enquanto o barco balouçava cortando as ondas quentes. Thomas deve ter percebido o truque. Porque na verdade Olíria não estava a embalá-lo. Era o mar que o fazia. Thomas estava cada vez mais pálido e, a certa altura, agarrou-se a Olíria, voltando a beijá-la com impetuosidade. Ela procurou abrir a boca o melhor que podia, a ver se ele apreciava melhor os seus lábios, a sua língua, os seus dentes. Quando Thomas a beijava, gostava de morder-lhe os dentes, sugar-lhe as gengivas, os cantos da boca. Às vezes, saltava mesmo sem ela esperar para as narinas e penetrava-as com a ponta da língua, deixando-a toda arrepiada. Depois do segundo beijo, Thomas não a olhou como havia feito da primeira vez. Deitou a cabeça no seu ombro, fazendo-a pensar que estava a descansar dos impetuosos beijos que davam. Ao aperceber-se de que o seu corpo estava tenso e frio, Olíria apertou-o contra os seios a ver se o aquecia. Pôs a hipótese de ele estar com dores de cabeça, ou com fome. Mas depressa esclareceu o equívoco, vendo que Thomas perdera completamente o controlo e desatara a vomitar sobre o seu ombro! Olíria sentiu respingos nos tornozelos e as costas do seu vestido novo completamente encharcadas.

Thomas agarrara-se a ela com todas as forças e não parecia ter intenções de a libertar. Vomitou tudo o que tinha no estômago. Olíria estava desolada. Nunca esperara um desfecho deste para o seu primeiro encontro a sós.

Quando recuperou, Thomas só disse que o problema da sua relação residia no estômago dele. Que era o estômago dele que estragava sempre os planos todos. E largou a fugir pelo barco fora, deixando Olíria convencida de que ia fechar-se no camarote, por estar envergonhado com o que se passara. Ela não o seguiu. Porque pensou que ele desejaria ficar a sós por algum tempo. Dirigiu-se ao camarote de uma amiga, pediu-lhe um vestido emprestado, mudou de roupa e voltou para a varanda do navio.

Já passava das vinte e uma horas quando desceu para o seu camarote. Mas, antes, queria saber como estava Thomas. Chegou junto da porta, abriu-a e verificou que ele não estava. Os beliches estavam intocados e a bagagem tal como a haviam deixado umas horas atrás. Olíria ficou aterrorizada ao pensar que Thomas pudesse ter sido capaz de cometer uma loucura. Saíu do camarote a correr, desesperada, a berrar pelo nome dele.







VII



- Não consigo encontrar no passado de Olíria algo que justifique a sua atitude - disse Maida. - Não creio que tenha problemas de maior. Nesta casa, Olíria cresceu e viveu sempre dentro de uma razoável normalidade. Procurei acompanhar do melhor modo possível as situações próprias das suas fases de crescimento. A todos os níveis. É natural que não tenha sido uma mãe perfeita. Sou pouco faladora e no fundo algo autoritária. Impus muitas vezes a minha vontade só com um simples olhar. Penso que nessas alturas ela se atemorizava. Mas sou a mãe dela. Quando Olíria completou dezoito anos, passou a ter mais liberdade.

- Parece-me que te esqueces de alguns pormenores que podem ter exercido a sua influência no comportamento actual de Olíria - comentou Jusa. - Já te disse não sei quantas vezes que ela se preocupa bastante com as suas unhas dos pés, mas tu respondes com uma gargalhada e dizes que isso é insignificante. A meu ver, os factos explicativos que tens encontrado são muito vagos e por aí podes nunca vir a saber porque motivos Olíria se encontra fechada no seu quarto há tantos dias. E quem sabe se ela não terá quaisquer razões para ter tomado tal atitude? Saberá ela própria porque faz isso?

- Dizes que tenho sido muito vaga nas minhas tentativas de explicação, mas, por outro lado, tornas-te tão miudinho que chegas a pôr a hipótese de Olíria ter decidido tal coisa sem ter motivos alguns. Então não sabes que uma rapariga da idade dela conhece rapazes e sofre desilusões? Já pensaste até que ponto terão sido essas relações afectivas? Continuas a referir coisas perfeitamente irrisórias, como sejam as unhas dos pés de Olíria. Mas ela usa sapatos e as unhas não se lhe vêem...

- Porventura ela dorme de sapatos? Não compreendes que Olíria quando vai para a cama deve ficar horas infindas a mirar as unhas dos seus pés? Tenta ser mais objectiva e profunda. As unhas dos pés de Olíria podem constituir uma questão irrelevante para nós, só que para ela é bem possível que não.

- Mas afinal, que que têm de anormal as unhas dos pés de Olíria? Ela tem unhas como toda a gente. Nunca me apercebi de alguma coisa que a pudesse preocupar nesse aspecto.

- Para ser exacto, não sei, não faço a mínima ideia acerca do que podem ter as unhas dos pés de Olíria. Talvez seja só um pressentimento. Ou apenas uma maneira de falar. Um exemplo. Quem diz as unhas dos pés, diz os joelhos ou as orelhas. Julgo que Olíria pode estar entristecida por algumas coisas aparentemente simples, mas que acabam por ter consequências mais vastas.

- A tua análise é perfeitamente descabida. Só tu és capaz de raciocinar assim. E depois ficas transtornado. Lembras-te do que ainda há dias foste fazer acima da laranjeira? Olíria pode ter ficado mais perturbada com esse teu comportamento. E nem sequer te preocupaste com o que a vizinhança poderia pensar.

- Quero lá saber da vizinhança! - respondeu Jusa com ar de desprezo. - Só quis chamar a atenção de Olíria, fazendo com que ela reflectisse bem sobre as consequências do seu acto, que estivesse consciente das dimensões sociais da sua decisão. O que fiz nada teve de anormal. Há por aí pessoas que fazem coisas muito piores e a vizinhança não se escandaliza.

- Olíria teve uma vida equilibrada e regrada. A não ser que lhe tenha acontecido alguma coisa que eu desconheça. Em criança não, porque sempre a acompanhei. Quanto à possibilidade de algum acontecimento mais actual, Olíria já tem a maturidade suficiente para resolver as situações. As histórias com rapazes são sempre banais. Nunca chegam a traumatizar verdadeiramente. Se Olíria tem motivos na vida para fazer o que fez, esses motivos só podem estar no passado. Por acaso alguém terá feito alguma coisa a Olíria que não tivesse sido do meu conhecimento? Se foste tu, Jusa, diz-me. Porque agora é a altura certa para examinarmos a sério o que se passa com a nossa filha. Tu fazes coisas que apelidas de vulgares, mas que perturbam as pessoas com freqüência, sem que te dês conta disso. Para ti, tudo é normal e simples.

- Sempre gostei muito de Olíria. Tenho por ela um amor infinito. Nada podia fazer que a prejudicasse.

- Mas há pouco referiste os joelhos dela. E depois as orelhas. Que têm os joelhos e as orelhas de Olíria?

- Referi isso só a título de exemplo - respondeu Jusa com veemência. - Nunca percebes o que digo. Não sei se há algum problema com os joelhos ou com as orelhas de Olíria. Mas ela é nossa filha e penso que devemos pôr todas as hipóteses acerca do que está por trás do seu comportamento. Além disso, não acho descabido pensarmos que Olíria procede assim, actualmente, porque apenas o deseja, ou porque julga ser o melhor que tem a fazer. Sabes bem que a nossa filha tem muitas ideias na cabeça, o que pode ser suficiente para que se tenha isolado. Uma ideia traz outra ideia e outra e mais outra. As ideias têm muito peso na vida da pessoa. Se for este o caso, não vale a pena nos preocuparmos com Olíria. Ela poderá andar a investigar as suas ideias, comparando-as entre si, aplicando-as à sua solidão.

- Outra análise genial, digna de Jusa e mais ninguém. Por aqui se vê como conheces bem a nossa filha. Agora são as ideias dela. Toda a gente tem ideias, homem, e nem por isso toma atitudes que se pareçam com aquilo que Olíria tem feito nestes dias. Estive a pensar nunca coisa. Lembras-te da noite em que Olíria nasceu?

- Tenho uma ideia...

- Recordo-me como se fosse hoje. Olíria nasceu a altas horas da noite. Passei a noite cheia de dores, exausta, passeando no quarto durante para cá e para lá. Não me deitei um minuto sequer. Tu estavas insuportável. Não me deixavas sossegada um momento. Era como se não percebesses o que estava para acontecer. Não paravas de me dizer: “Maida, vem deitar-te, vem descansar!” Mas eu sabia muito bem quais eram as tuas intenções. Por isso não fiz o que me pedias. Sei lá o que terias feito se eu tivesse ido para a cama como de costume. Tinhas-te atirado a mim, com certeza. Mas Olíria podia nascer a qualquer instante. Passei toda a noite de pé só para evitar que fizesses algum disparate. Por mais que te explicasse, nunca te convencerias de que eu estava no último dia de gravidez. Se me visses a teu lado na cama, não resistirias como das outras vezes...

- Estás a inventar coisas! Como podes estar tão certa acerca das minhas intenções nessa noite? Que provas tens para fazer tais afirmações? Por acaso saí dos limites do bom senso?

- Comportaste-te bem, mas só porque eu nunca quis ir para a cama. Vi muito bem nos teus olhos o que tu querias. E tive medo.

- Desculpas! Desculpas!! - vociferou Jusa. - Se me tivesses dito o que se passava, podias ter vindo para a cama que eu nem com um dedo te tocava. Nunca me disseste o que estava a acontecer, realmente.

- Isto é o que dizes agora! Na altura, não terias sido capaz de te controlar. Conheço-te muito bem.

- Não é verdade. Sei muito bem o que faço e não faço. Se me tivesses contado tudo, eu até nem teria ficado em casa nessa noite. Chegaste a dizer-me que tinhas uma coisa para me contar, que tinhas de me dizer uma coisa que te apertava a garganta. Mas nunca disseste nada. Só anos depois é que descobri tudo. Anos depois. Naquele dia, não foste sincera comigo. Soube-o por outras vias. E ainda hoje te recusas a falar no assunto.

- Esse assunto nada tem a ver com a situação em que hoje se encontra Olíria. O que acho é que o facto de eu ter passado aquela noite sem repousar um minuto pode ter afectado Olíria psicologicamente. Tu não saías dali e estavas sempre a pedir que me fosse deitar. Mas o que pretendias era outra coisa.

- Não podes continuar a ser tão leviana. Não sou responsável pelo que aconteceu na noite em que Olíria nasceu. Estavas sempre a perguntar-me as horas. Parecia que desejavas o parto a uma determinada hora. Ou até dava a impressão de estares à espera de alguém naquela noite. Por isso não te querias deitar. E o que pretendias era que eu saísse chateado de te ver andar para um lado e para o outro. Nessa altura, cheguei a ter as minhas desconfianças e pensei mesmo pôr-me a léguas. Mas depois julguei que podia estar a ser injusto contigo. E fiquei. Fiquei sempre. Até mesmo quando fiquei a saber tudo a teu respeito. Ainda hoje aqui estou. E hei-de continuar por muito mais tempo do que desejas. Sinto ter cada vez mais razões para não me ir embora. Quando chegou a hora de Olíria nascer, obrigaste-me a sair da cama, para que te pudesses deitar, esta é que é a pura da verdade. Estendeste-te, levantaste a saia, abriste as pernas e proibiste-me de ir chamar a parteira. Não havia maneira de Olíria nascer. Estive horas levantado a olhar para ti estendida na cama. Gemeste como uma ovelha durante horas e nada. Até que eu não tive outro remédio senão voltar a deitar-me. Adormeci logo a seguir, esgotado. Sonhei que estávamos a fazer amor e recordo-me de ter acordado na melhor altura. Despertaste ao mesmo tempo e insultaste-me de todas as formas, dizendo que eu não te respeitava, que não tinha noção das coisas. Fizeste tanto barulho que Olíria deve ter pensado que estávamos a fazer alguma festa de Carnaval. Levantaste uma perna para correres comigo da cama e, quando menos pensavas, então, Olíria nasceu desembaraçadamente, como quem entra numa sala ruidosa e dá um ar da sua graça para medir o alcance da festa.









Luz






VIII



Olíria estava sentada na cama em camisa de dormir com os joelhos dobrados ao pé do rosto. Deslizava os dedos sobre a pele. Por baixo o osso, a rótula. Apetecia-lhe tocar com a língua nos joelhos. Deixou cair a cabeça para a frente, fechou os olhos, viu tudo escuro. No dia anterior, tinha dito a Barba Branca que o amava muito. E sentira de verdade o que dissera. Mas hoje não era capaz de repetir tal afirmação. Aliás, sentia exactamente o oposto do que lhe havia dito antes. Não o amava. Sentia até repulsa por ele. Como podia alguém estar apaixonado por um retrato? Seria possível amar um velho com os olhos fixos no tempo? Um velho morto. Devia estar parva quando lhe dissera que o amava. Barba Branca já se devia ter apercebido da alteração que se dera nela porque se encontrava muito quieto no seu lugar. Olíria recusara-se a fazer amor. Não estava disposta a contrariar os seus sentimentos. Talvez no dia seguinte voltasse a amá-lo e seria então toda dele. Reconhecia que sentir assim era uma forma de instabilidade. Como podia amar e não amar? Olíria sentia que era muito complicada de facto. Ou não sabia o que queria, realmente. Pois então havia de ser o que era: às vezes amaria alguém, outras vezes não. Algumas vezes gostaria da vida, outras não. Aceitar-se-ia assim contraditória. Porque tudo o que sentia fazia parte do seu ser. Devia ser livre em todos os aspectos. Não seria saudável se se reprimisse em alguns e em outros encurtasse as rédeas. Em certas ocasiões, sentia-se inteligente e via com clareza. O seu raciocínio era rápido, intenso, agudo. Mas havia outros momentos em que não percebia nada. Ficava distante, demorava a captar o sentido das coisas e das palavras. Seria assim porque o mundo se transformava à sua volta? Ou seria ela que mudava e não era sempre a mesma pessoa? Ou seria que se alteravam as suas capacidades? Pareciam-lhe bem as duas hipóteses. Era verdade que o mundo se transformava. E como ela pertencia ao mundo, era certo que variava também. Não havia contradição, portanto. As coisas é que mudavam no seu todo. Como parte insignificante da vida, ela não podia pretender a todos os momentos atingir a totalidade do que acontecia. Mas achava possível manter-se aproximada das alterações que as coisas sofriam, dos seus novos rumos. Só que isso lhe exigia um permanente esforço, exclusivo, fortíssimo. Por isso estava ali fechada. E desde que o fizera sentia-se melhor. Tinha menos confusões na cabeça. A maior parte dessas confusões deviam-se ao facto de ela ouvir uma opinião, depois outra. Via este e aquele, tão semelhantes e pensando tão diferentemente. Por outro lado, as pessoas deixavam-se cair em enormes equívocos. Não pensavam por si, não criavam condições para abordarem a realidade que as cercava. O problema era delas. Que se resolvessem. Ou continuassem como até aqui, porque não era ela que lhes ia resolver as paranóias. Para já, não a aceitavam. Ela bem tentara exprimir certas ideias, analisar certos factos, despir as coisas dos aspectos que as tornavam obscuras. Mas as pessoas respondiam quase sempre com um sorriso amarelo, uma expressão de troça. Consideravam excêntricos os seus raciocínios. Então, decidira ficar só. Estava leve, feliz. Tinha o melhor companheiro do mundo. Do seu quarto, podia observar as coisas necessárias para não vir a ficar com uma visão desfocada da realidade. Sobretudo ouvia muito. Lá fora, os carros, os passos dos transeuntes, o vento, as vozes surdas, as buzinas das crianças, um cavalo ou outro de vez em quando. Via o mar, as nuvens, o Sol, a noite, o dia, a Lua, os pássaros, as pedras, a laranjeira, a espuma, o musgo e os rapazes que o recolhiam, os quadros na parede, as cadeiras, o tecto, o soalho, a sua cama, os lençóis, o colchão, o estrado de madeira, o tapete, algum bolor nas paredes, os vidros, ela própria, as partes do seu corpo, as unhas dos pés, os joelhos.

Foi ao espelho observar as suas orelhas. Eram macias nos lóbulos, como todas as orelhas. Só gostava de coisas macias. Assim, tinha todas as condições para ser feliz. Ou para não ter problemas. Porque ser feliz era não ter problemas. Viver calma e serenamente. Era o que ela fazia. Mas imaginava o que as pessoas andariam a pensar dela. Que era isto e aquilo, que os motivos do seu isolamento eram estes, aqueles e aqueloutros. Ninguém devia perceber que ela só procurava rigorosamente o que encontrava no seu quarto. E que aquele era o tempo mais importante da sua vida. Olíria não se sentia isolada. Porque não havia tristeza dento de si. O que encontrara fora a solidão. E a solidão não significava estar só. Era uma coisa completamente diferente do que a maioria das pessoas julgava. A solidão trazia o equilíbrio e a alegria, enquanto o isolamento provocava o ressentimento. A solidão era um acto livre de desprendimento das normas sociais que leva a uma progressiva aproximação das coisas simples e naturais, as coisas que interessam. Isolar-se era recalcar-se, confundir-se, deixar-se mergulhar na angústia. Escolher a solidão levava-nos a entender, a desanuviar, a não pôr sequer a hipótese de se estar bem ou não estar. A solidão não deixava nuvens dentro da alma. Solidão era estar bem sem ter a preocupação de se estar ou não. Mas a solidão também não trazia respostas. Quando se encontrava a solidão, o que acontecia é que não havia perguntas para fazer. O espírito não interrogava. Passava a satisfazer-se livremente com o que o rodeava. Entender as relações entre os seres existentes era o objectivo maior que se podia ter. E isto não se conseguia passando horas a fio nos bares, nas igrejas, nos cafés, nas ruas, diante das montras, nos supermercados. Aí, era-se levado pela publicidade, pelas leis impostas de cima. Teríamos sempre leis, mas uma coisa eram as leis que cada um fazia para si mesmo e de acordo com o seu modo de ser, outra eram as leis elaboradas por gente estranha e que éramos obrigados a cumprir.

Ainda que fôssemos nós a escolher os legisladores o problema da liberdade não ficava resolvido. Ficava camuflado. Porque a liberdade se perdia na passagem de um indivíduo para outro indivíduo e do indivíduo para o colectivo. A liberdade só existia dentro de nós. E, geralmente, as pessoas desconheciam o que estava dentro delas porque se deixavam levar pelos apelos da sociedade de consumo. E se não sabiam o que tinham dentro delas jamais podiam ser livres e sentir alegria. Para saber de facto o que acontecia dentro de nós, tínhamos que estar sozinhos. Não isolados. Porque uma vez tomando conhecimento do nosso ser real passávamos a conhecer melhor o ser real das outras pessoas, dos bichos, das coisas. E então passava-se a perceber o que antes não se percebia. A solidão era o único modo de estar acompanhado. Olíria sentia um grande contentamento dentro de si. Primeiro, fora a liberdade. Depois, a alegria de ver as coisas e a vida na sua imobilidade. Não se tratava de uma convicção absoluta, nem relativa. Significava, no mínimo, não aceitar a dicotomia primária de que tudo era relativo ou absoluto. A mudança está nas coisas e em nós.

Olíria abriu os olhos e viu tudo claro. Pensara em tanta coisa. Banalidades. Mas a sua solidão era só dela. Tinha a sensação de que as palavras não exprimiam as suas emoções e pensamentos. Já o mesmo não acontecia quando se tratava do seu corpo e do seu quarto sobre as rochas. A solidão sobre o mar.







IX



Desceram a escada que dava para a rua. O vento apareceu, iluminando o rosto de Ana e atirando-lhe os cabelos eufóricos para trás da cabeça. Nino puxou de uns óculos escuros e espetou-os no nariz para disfarçar a brancura do dia.

Ana olhou-o de soslaio e nada disse. Deram as mãos.

- Ontem, não fui sincero contigo - disse Nino, enquanto caminhavam. - Afinal, não tenho conhecidos aqui.

- O que quer dizer que então vimos cá só para passear - completou Ana com um sorriso.

- Não é bem isso - respondeu Nino. - Apesar de ter cá uma casa, ainda não conheço bem este lugar. Passo demasiado tempo no apartamento. Ando sempre muito ocupado. Espero que desta vez seja diferente.

- Porque escolheste este lugar?... - perguntou Ana.

- Foi um pouco ao acaso. Soube que havia um apartamento à venda. O preço era razoável. Comprei-o. Não me preocupava muito ser aqui ou noutro lugar - disse Nino, procurando mostrar-se distraído.

- Sempre que te referes a este sítio, noto que alguma coisa muda dentro de ti. Já te conheço o suficiente para me aperceber disso. És pouco aberto sobre certas coisas. Em parte, gosto de estar contigo por seres assim. Tens algo de misterioso que me desperta a curiosidade, que nunca me deixa estar quieta por dentro. Fico com o coração aos pulos. Dás a impressão de não dizeres tudo o que sabes. E ages assim intencionalmente. O que faz com que me apeteça conhecer-te melhor. Mas não ando muito à vontade com a nossa vinda cá desta vez. Sinto uma angústia que não é habitual em mim quando estamos juntos. É a primeira vez que me acontece. Em outras ocasiões, o teu mistério desperta-me curiosidade. Agora, no entanto, é mais do que isso. É como se algo de que eu goste muito me esteja a fugir das mãos quando me preparo para adormecer.

- Não tens motivos para te sentires dessa maneira. Se fosse importante, eu dizia-te. Fazes parte da minha vida. Eu era incapaz de te esconder alguma coisa que fosse determinante para nós os dois. Mas também te posso dizer que há muita coisa que pode mudar totalmente dentro de pouco tempo? Não gostas do imprevisto?

- Gosto..., desde que isso não prejudique a nossa relação.

- Entramos para tomar um café?

- Sim.

Sentaram-se. Era cedo. O café tinha acabado de abrir as portas, pelo que se via. No canto do fundo, o velho Roque entornava o bagaço do costume com os olhos revirados para o tecto escurecido pelos dejectos das moscas e sombras movediças das mulheres que atravessavam a claridade da porta. O empregado veio e olhou para Ana, que pediu um copo de leite, enquanto Nino pediu um café.

- Esqueci-me de comprar o jornal - disse Nino. - É só um minuto...

Quim veio trazer o café e o copo de leite. - O seu pai demora? - perguntou.

Ana olhou-o, viu o bigode negro, que parecia desenhado a carvão, sobre o lábio superior, mas não respondeu porque lhe pareceu que a pergunta não vinha a propósito.

- Chamo-me Quim - insistiu ele.

Ana levou o copo aos lábios, silenciosamente, e bebeu o primeiro leite fresco da manhã.

- Não é a menina do gelado? - voltou o empregado à carga sem desarmar.

Ana fez que sim com a cabeça. Quim deu meia volta levando um grande sorriso dependurado no bigode.

Ana olhou para o relógio. Bebeu o leite todo. O café de Nino arrefecia na sua frente. O velho Roque levantou-se do canto do fundo, passou por Ana e disse:

- O meu nome é Roque - como se estivesse a falar sozinho.

Ana esperava a todo o momento ver Nino aparecer recortado na claridade da porta. E ficou a olhar para fora durante algum tempo. Quanto mais olhava, mais claro se tornava o rosto dela. Parecia que a luz absorvia a sua pele.

Enquanto dispunha sobre o balcão alguns copos lavados, Quim pensou que muita gente se sentava ali no café e se punha a olhar insistentemente para fora. Ana era mais uma. Pareceu-lhe que a menina do gelado estava preocupada. O pai tinha cara de folião. Se calhar, fora à borga e esquecera-se da filha.

Ana voltou a olhar para o relógio. Já tinham passado trinta e cinco minutos desde que Nino fora comprar o jornal. Mas ele avisara que não se demoraria. E se pedira o café era porque tencionava não demorar.

Nemo entrou e dirigiu-se ao balcão. Tomou um café. Ana lembrou-se de que era um daqueles que vira no dia anterior e que chamara a atenção de Nino. Nemo falava com Quim despreocupadamente. Sem saber exactamente porquê, Ana pensou que estavam a falar dela.

- Deseja mais alguma coisa? - perguntou-lhe Nino sem sair detrás do balcão.

Ana sentiu os olhos de Nemo cravados nas suas costas. Fingiu não ouvir. O café de Nino estava irremediavelmente arrefecido. Ana sentiu que lhe doíam os joelhos e perguntou-se interiormente se teria acontecido alguma coisa a Nino. Ela não conhecia ninguém por ali, nem tinha a chave de casa se quisesse regressar à espera que Nino aparecesse. Fazia já uma hora e vinte minutos que não sabia dele. Mas estava ali um dos rapazes que Nino lhe pedira que seguisse. Se fosse atrás dele, Nino podia regressar e não a encontrar. Mas talvez não valesse a pena estar assustada. Se Nemo saísse, segui-lo-ia e depois se veria. Sempre queria saber se Nino andava metido em sarilhos.







X



Pouco depois, Nemo pagou o café e saiu disparado para a rua. Ana deixou algumas moedas em cima da mesa e dirigiu-se para a porta de saída, procurando mostrar naturalidade. Quim observava-a de longe. Ana viu Nemo contornar a esquina e foi atrás dele. Ao fazê-lo, olhou em redor de si, a ver se Nino estaria por acaso no passeio como no dia anterior, lendo a última página do jornal. Mas não estava. Então, Ana foi aos saltinhos atrás de Nemo.

Ao sair do café, Nino comprara o jornal ali perto e dirigira-se a uma pastelaria. Foi à casa de banho, que ficava na cave. Abriu a porta e viu que os dois urinóis estavam ocupados. A porta da retrete encontrava-se fechada. Nino encostou-se à parede e esperou. Os homens dos urinóis não buliam, nem davam mostras de se despacharem tão cedo. Nino desdobrou o jornal e passou os olhos pelos títulos da primeira página. Depois, passou para a última. Um dos homens dos urinóis voltou a face levemente. Nino pensou que aquele rosto não lhe era desconhecido. Reflectiu uns segundos e lembrou-se de que era um dos homens que no dia anterior estivera sentado em frente da sua mesa de café. Olhou para o relógio e veio-lhe à ideia que Ana devia estar apreensiva com a sua demora. O seu café estaria frio com certeza. Mas só arrancaria dali depois de urinar. Estava nas últimas. Mesmo que quisesse voltar para junto de Ana, já não o faria com as calças em seco. Esperou. Um dos homens endireitou a cabeça, mantendo o corpo hirto.

Nino pensou que estavam a demorar muito tempo. Não fazia sentido. Mais tarde ou mais cedo tinham que acabar o que faziam.

Folheou o jornal, sentindo dores na bexiga. Olhou o lavatório: a torneira pingava. E se urinasse ali? Mas não o faria em frente de desconhecidos. Teriam aqueles homens outras intenções? O indivíduo de quem ainda não vira a cara era possivelmente outro dos rapazes que no dia anterior encontrara na mesa do café. Nino foi à porta da retrete e bateu. Não houve resposta. Com aquele gesto, pensou que daria a entender aos homens dos urinóis que estava aflito.

E se saísse por uns minutos? Esperaria do lado de fora da porta a ver se davam por findo o que estavam a fazer. Nino saiu e fez como acabara de premeditar. Estava impaciente e maldisposto. A bexiga podia rebentar-lhe de um momento para o outro. Passados alguns minutos, voltou a entrar nos lavabos. Os homens nem moveram as cabeças. Continuavam na mesma posição, como se fossem estátuas de cera. Nino estava furioso. Não esperou mais. Saiu com determinação subindo de dois em dois os degraus que davam para o piso de cima. Abandonou a pastelaria e foi a correr para o café onde deixara Ana sozinha em frente de um copo de leite.

Nemo não se deve ter apercebido de que Ana o seguia, porque nunca voltou a cabeça para trás durante todo o percurso em que a levou na peugada. Nemo parou em frente a uma pastelaria, entrou e foi direito às escadas do fundo que davam para a cave. Ana não pôde segui-lo. Deixou-se ficar junto ao balcão à espera de ser atendida. Pediu um bolo. E procurou estar atenta a ver quando o rapaz saía da casa de banho. Ao menos, quando voltasse a encontrar Nino, esperava ter qualquer coisa para lhe contar.

Ana pensou que não seria difícil reencontrar o companheiro, nem que acabasse por ir sentar-se à porta de casa até que ele chegasse. Comeu o bolo. Esperou. Pediu outro.

Nemo não dava sinal de vida. Ana pagou os dois bolos e foi postar-se do lado de fora da pastelaria. Encostou-se à vitrina dos bolos e continuou à espera que o seu perseguido acabasse de vazar as urinas. O tempo demorava a passar como nas noites quentes. Era já perto do meio-dia. Ana pensou se a casa de banho não teria uma passagem secreta para um outro mundo. O homem não aparecia. Mas ela decidiu não sair dali enquanto não tivesse algo de concreto para contar a Nino.

Nino urinou num beco. E quando entrou no café de Quim, viu que Ana não estava lá. O empregado recebeu-o com um sorriso e perguntou-lhe se queria outro café. Nino respondeu que não, saindo nervosamente.

Quim viu-o afastar-se e voltar à esquerda na direcção da esquina. O empregado deixou-se ficar pensativo por uns minutos, até perceber que o seu rosto devia estar iluminado como o da menina, de tanto olhar para a claridade lá fora.







XI



Olíria estava por trás da vidraça, penteando-se com grandes cuidados, enquanto Barba Branca arregalava os olhos para a claridade que contornava o seu corpo esbelto. O velho fechava os olhos e voltava a abri-los só para se certificar da harmonia daquela visão. E pensava nos motivos que faziam com que Olíria estivesse tão silenciosa naquele dia. Que pensamentos andariam no seu cérebro? Ultimamente, nem era tão carinhosa para com ele. Nada havia acontecido, a seu ver, que pudesse explicar aquele esfriamento na forte relação que os unia. Ele estava a cumprir, integralmente, o acordo estabelecido com ela. Não diria palavra. Limitar-se-ia a ouvi-la. Quando quisesse expressar as sua emoções ou ideias, fá-lo-ia por gestos, olhares, movimentos de cabeça. Não se fartava de dispensar carinho àquela mulher. Não sabia de que outros modos exprimir o amor que sentia por ela. Não se cansava de mirar Olíria de todos os feitios e ângulos. Enternecia-se por ela, interessava-se pela suas dúvidas e problemas, embora Olíria muitas vezes parecesse não dar importância à sua dedicação. Será que Olíria já havia dito tudo o que tinha para dizer? Teria compreendido o mundo completamente? As relações entre os seres? O seu significado e vibrações íntimas? Seria aquele um momento passageiro no seu humor e voltaria a ser terna e disponível como antes? A verdade é que só lhe restava permanecer mudo, na expectativa de ouvir Olíria, sempre que ela assim o entendesse. Ele seria compreensivo e tudo faria para a tornar feliz ali na solidão do quarto onde ela tencionava viver o resto dos seu dias.

Mas Barba Branca não parecia estar muito convencido de que Olíria conseguisse levar por diante os seus intentos. No fundo, receava que ela mudasse de opinião e de atitude, que regressasse ao convívio dos amigos e da família, pondo um fim inevitável à relação que agora os unia. Quando Olíria regressasse à sua vida normal, Barba Branca ficaria limitado a acompanha-la na escuridão das noites. Vê-la-ia despir-se, peça por peça. Desejá-la-ia, mas não teria coragem de o demonstrar. Um retrato não se fez para dar sinais de vida, mas sim para estar ressentido durante o mais longo período de tempo possível.

Desde que se fechara no quarto, Olíria dispensava-lhe mais atenção. Mas isso era apenas porque ela não tinha mais nada com que se entreter. Não tinha homens reais para amar, por isso descarregava nele os seus instintos recalcados. Ninguém vivo e palpável a acompanharia em tão louca aventura. Em geral, as pessoas não compreendiam a solidão. Receavam-na. O que não acontecia no seu caso, um solitário por excelência, que compreendia o que se passava à sua volta, através de lentas e progressivas interpretações das coisas e dos acontecimentos. Olíria sabia-o muito bem. Por isso se refugiara na sua companhia.

Barba Branca sentia que ela o amava, mas só porque tal lhe convinha naquele momento. Não se tratava de desconfiança nem de insegurança da sua parte. As pessoas é que eram assim. A experiência que tivera em vida ensinara-lhe que, mesmo quando dizem que amam, os seres humanos se servem uns dos outros para alcançarem interesses de ordem económico-emocional.

Gostava muito de Olíria. Amava-a infinitamente. Estava na disposição de que através dele ela encontrasse e realizasse os seus objectivos. Estaria a ser uma vítima no meio de tudo isto? Lá fora não deviam estar muito preocupados com o facto de ele se encontrar ali encerrado com Olíria. Deviam pensar que já não gostava de mulheres, que teria esgotado todas as suas capacidades e forças físicas.

A sua natureza tornara-se tímida e reservada. Ninguém devia calcular que ele podia ter um papel determinante na solidão da sua companheira de quarto. Olíria não era suficientemente autónoma para levar a bom termo o seu projecto sem ter alguém em quem se apoiar. E aqui entrava Barba Branca. A relação que Olíria tivera com Thomas nunca passara de um mero flirt.

Naquele quarto, Barba Branca era o objecto mais parecido com o homem, por isso era natural que Olíria se interessasse por ele de forma exclusiva. Tinham passado juntos momentos de grande prazer. Quando faziam amor, Olíria tirava-o da parede e levava-o para a sua cama. O velho estendia-se por cima dela e entregava-se-lhe nos braços.

Não era difícil Barba Branca sentir que era o homem ideal de Olíria, porque ela se lhe entregava toda, sem reservas nem preconceitos.

Olíria acabara de pentear-se, pondo-se a olhar para fora, o que fazia com que o velho não a visse com nitidez, já que ela mudara de posição e a claridade se tornara mais forte. Às vezes, parecia mesmo que a luz se preparava para a engolir, como se não resistisse a tamanho encanto num só corpo, frágil, mas tempestuoso.

Barba Branca pressentia que os ombros de Olíria desatariam a vibrar. E apeteceu-lhe reclinar neles a sua cabeça tonta de pensar. Apeteceu-lhe sentir a pulsação dos seios de Olíria. Não hesitava em dar-lhe tudo o que tinha. Olíria era o seu único amor. Quem diria que só viria a encontrá-la depois de estar reduzido a um simples e rugoso retrato? Mas já que agora podia tê-la completamente, aproveitava o mais que podia. Enquanto ela não decidisse abandoná-lo num canto, como se faz aos retratos antigos...

Barba Branca aprendera há muito tempo que também devia defender os seus interesses, caso desejasse conseguir alguma coisa na vida. Começara por ser puro, ingénuo, um mãos largas para toda a gente. Mas apanhara tantas desilusões que tivera de se pôr à defesa. Percebera que devia pensar primeiro nele e realizar-me como pessoa, mesmo depois de ter passado à condição de retrato.

Só que abrira uma excepção com Olíria. O seu único objectivo era estar junto dela e gozar de todas as formas possíveis o prazer da sua presença constante. Não tinha metas de ordem intelectual. Houvera um tempo em que chegara a alimentá-las, mas acabara por desistir no dia em que aprendera que o conhecimento não exigia qualquer esforço mental. Todo o saber reside na noção da existência integrada no cosmos. Não se considerava estúpido ou simplório. Só captava as coisas como eram na realidade. E nem sequer punha em dúvida se seria de outra maneira. Barba Branca tinha a seu favor a vantagem de já ter morrido, uma experiência que lhe permitia confirmar uma quantidade de coisas. Podia afirmar com toda a certeza, por exemplo, que depois da morte não havia qualquer tipo de vida sobrenatural. Descobrira que Deus não existia. Nem os anjos, nem o Diabo.

Depois de falecer, Barba Branca fora enterrado e nunca tivera acesso a qualquer outro lugar. O seu corpo desfizera-se na natureza com o tempo, deixando-o reduzido a pó no cemitério. Porque já lá haviam enterrado outra pessoa depois dele.

O único lugar onde a sua identidade se perpetuava era no retrato que Olíria guardava tão zelosamente e do qual se aproveita como muito bem queria e entendia.

Os filósofos empenhavam-se até à exaustão na tentativa de compreenderem os segredos da vida. Mas a vida não tinha quaisquer segredos. A vida era o que se via. A morte, por seu turno, dava-nos a chave de todos os mistérios. O mistério dos mistérios era que a existência não tinha qualquer mistério.

Ora vissem como os pássaros e os peixes se tinham apercebido disso há tantos séculos! Os humanos, com todo o seu esforço intelectual, eram obrigados a prescindir de um sem número de outras experiências fundamentais para a compreensão da vida. Para Barba Branca, uma árvore era uma árvore. Apenas isso.

Olíria ia-se aproximando do seu modo de pensar. A sua serenidade existencial devia estar a ajudá-la na prossecução dos seus ideais. Barba Branca não se interrogava acerca do que via porque, a seu ver, essa não era a melhor postura para se alcançar o conhecimento de algo. A interrogação previa a necessidade de uma resposta, mas a natureza não era um jogo. As pessoas deixavam-se levar por coisas e momentos absurdos. Não previam a interioridade das situações.

Alguns filósofos admitiam que um acidente era uma alteração na cadeia dos seus raciocínios lógicos e mais nada. Pensavam assim porque excluíam a intimidade nos seres viventes, as suas secretas ligações, os seus elos invisíveis que só a intuição podia entender e nunca o pensamento racional imediato. O conhecimento ia acontecendo dentro de nós, amadurecendo como os frutos, lentamente. Para se conhecer, só era necessário ter um pensamento expectante e paciente. Quando se interrogava constantemente só se conseguia outras interrogações ad infinitum.

Olíria estava à procura de se conhecer plenamente, mas Barba Branca tinha dúvidas sobre se ela conseguiria libertar-se de tanta carga ideológica do passado. Ele próprio só almejara alcançar tal objectivo depois de se ter transformado num retrato de parede. Mas esperava que a sua experiência acabasse por ser útil a alguém.

Se Olíria chegasse ao ponto do discernimento total, era certo que não o abandonaria. Barba Branca tinha que ajudá-la. E a melhor maneira de o fazer era continuar a não emitir palavra, para que ela entendesse que a calma interior era não só possível como profundamente desejável.

Barba Branca era o maior amigo de Olíria. Por isso, competia-lhe estar a seu lado. Não acreditava que ela o amasse tanto como ele a ela, mas isso era o menos. Na sua idade, não se podia exigir mais. Havia sempre um desequilíbrio nos sentimentos que uniam as pessoas. Um dos lados gostava sempre mais do que o outro. Não valia a pena viver com essa ansiedade.

O ideal era aceitar as coisas como elas eram, desde que isso não significasse estagnar. Ou desde que não gerasse injustiça.

Embora Olíria não tivesse condições para o amar tanto como ele a ela, Barba Branca achava que podia recuperar terreno caso optasse pelo jogo emocional.

Mas era sua convicção de que tal não era o mais aconselhável no momento.

Não convinha que ele se retraísse, para que Olíria sentisse a necessidade inconsciente de se aproximar. Se o fizesse, lançaria angústia sobre ela e prejudicaria a caminhada que encetara tão corajosamente.

O velho sabia muito bem os riscos que corria. Podia deitar tudo a perder. Mas estava disposto a não recuar um palmo nos seus compromissos. Havia que libertar Olíria das garras do mundo. Uma vez atingindo Olíria o real conhecimento das coisas, não seria preciso recorrer ao tradicional jogo amoroso para que ela o amasse por inteiro.

Conhecia ele mais coisas que Olíria? Conhecia melhor? Não. Para Barba Branca, o conhecimento não consistia propriamente na aquisição concreta de saber. O conhecimento era um modo de estar. Na opinião dele, tratava-se de um estado de ser. E enquanto Olíria não conseguisse tal objectivo jamais poderia entender o que se passava realmente à sua volta. Olíria possuía muitos dados informativos sobre a evolução das ciências. Mas que diziam as ciências de especial? As ciências dependiam da experiência do concreto, das tecnologias, do inconsciente do sujeito.

Era tudo muito volátil E nenhum cientista alguma vez passara pela experiência da morte. Parecia-lhe, até, que algumas ciências se haviam tornado ditatoriais, uma forma moderna, sofisticada e subtil de impor coisas às pessoas. Segundo a própria ciência, ninguém tinha autoridade para fazer afirmações absolutas. No entanto, a ciência impusera a ideia de que a Terra andava à volta do Sol. Barba Branca via interesse nas ciências, mas só no campo da investigação. Uma investigação livre que prescindisse de procurar antecipadamente respostas para os problemas. Ou que desse respostas não definitivas, que não se institucionalizassem. Porque depois outras descobertas se fariam. A investigação científica devia fazer, apenas, uma livre e descomprometida abordagem das realidades.

A ciência não se desenvolvia em liberdade. E quem sabe se não seria por isso que o mundo continuava ser o que sempre fora? Ideias fixas, preconceitos, tabus.

O que era a vida senão o movimento do olhar sobre a natureza? Ninguém possuía a verdade porque nunca se sabia o que estava para além da curva no rio.

Olíria continuava impávida por trás das vidraças. Estaria a adivinhar os raciocínios mirabolantes do velho? Barba Branca movimentou os lábios como quem se prepara para assobiar. Mas não o fez. Desatou antes a soprar na direcção de Olíria, fazendo esvoaçar os cabelos dela e envolvendo-a num arrepio.

O velho estendeu o queixo para fora do retrato e insistiu. Pôs a língua de fora, mas Olíria não parecia muito disposta a dar-lhe atenção.

Daí a pouco, ela despertou da passividade em que caíra, notando-se que o seu corpo vibrava como nos momentos de maior prazer e entrega. Deslocou-se até junto do retrato do velho que, extasiado, percorreu o ombro direito de Olíria com tudo o que tinha ao seu alcance...

Depois, Olíria afastou-se e com lentos movimentos foi deitando sobre a cama as costas acaloradas. Abriu os braços e chamou Barba Branca.

Olíria estava viva, de novo, mas o delírio impedia-a de ir arrancar o velho da parede. Olíria fingiu-se morta para que ele a possuísse livremente.

Barba Branca pensou que aquela era mesmo a posição ideal. Em posição de morta, Olíria ficava mais atraente do que nunca. E ele que nada podia fazer naquele momento. Apeteceu-lhe quebrar todos os compromissos e suplicar a Olíria que o arrancasse da moldura na parede, para que pudesse gozar à farta a situação. Mas reflectiu que é nos momentos difíceis que as pessoas se devem controlar. Olíria perderia o respeito que tinha por ele se não soubesse resistir naquela altura. Mas nem por isso deixou de imaginar como seria bom subir pelas colinas do corpo de Olíria, não fora o pormenor de ela se ter descuidado e ter ido para a cama antes de o desprender do prego enferrujado em que estava suspenso por um fio.

Limitou-se a soprar na direcção do corpo de Olíria, fazendo-o contorcer-se instintivamente, enquanto ela descia as pontas dos dedos pelo ventre, pernas, joelhos e, a seguir, levantava a camisa de noite, expondo o sexo aos olhos escancarados de Barba Branca, que soprava com todas as forças, quase ao ponto de os pulmões de papel fotográfico lhe saltarem pela boca.









Terra






XII



- Ando a pensar se Olíria não terá sabido coisas por outras pessoas - disse Maida, enquanto Jusa olhava para a laranjeira e para o mar, alternadamente. - Acho que lhe podíamos ter dito a verdade. Fui sempre muito reservada com Olíria. Nunca tive coragem de lhe dizer como as coisas se passaram. Tu também não colaboraste, Jusa. O teu cérebro mirabolante podia ao menos ter previsto a reacção de Olíria. Parece que vives com os olhos tapados. Como vamos fazer agora que Olíria se isolou e por nada deste mundo nos dá ouvidos? Que pensas se eu for lá ao quarto e disser que estou disposta a contar-lhe tudo? Posso explicar-lhe as circunstâncias em que tudo se passou e pedir-lhe perdão. Quero que ela me compreenda e desculpe. Sinto remorsos. Diz qualquer coisa...

Jusa continuava a olhar para fora, para as traseiras da casa, agora como se não visse a laranjeira, nem o mar.

- Estás a pôr a hipótese de Olíria ter tomado conhecimento de algumas coisas por vias estranhas a nós - disse Jusa passados alguns minutos. - Mas não tens a certeza disso. Como sabes que Olíria se isolou por esses motivos? Estás muito instável. Presta atenção ao que dizes para que a situação da nossa filha não venha a piorar. Uma vez que ela deixe de se preocupar com os seus joelhos, as unhas dos pés ou outras coisas do género, verás que volta ao nosso convívio.

- Não consegues deixar de ser ridículo! - respondeu Maida.

- O problema desse segredo que sempre escondeste de Olíria é teu - replicou Jusa. - Só teu. Nada tenho a ver com isso.

- Mas aceitaste a situação. Por isso, também tens responsabilidades.

- O mar anda calmo como eu e como Olíria. A nossa filha está tranquila. E não se encontra sozinha no quarto. O retrato do meu tio faz-lhe companhia. Levamos-lhe as refeições diariamente. Deixa Olíria fazer o que lhe der na vontade.

- Esqueces-te que ela não toma banho há duas semanas.

- Isso é o que menos interessa. A nossa filha já é crescida e não temos o direito de nos intrometer na sua vida.

- Nunca te conheci tão independente e seguro. Estás a menosprezar o essencial do problema. Correm boatos e notícias vergonhosas acerca de Olíria.

- Porque falaste no caso às tuas amigas?

- Mais tarde ou mais cedo vinham a saber. E depois seria pior. Inventariam coisas terríveis para castigar o meu silêncio.

- Ninguém tem nada a ver com a vida de Olíria. E, quanto ao meu tio, toda a gente sabe que um retrato não pode abusar de uma mulher.

- Só por tocares nesse assunto, começo a ter as minhas desconfianças. Então ele está há duas semanas fechado no quarto com Olíria só para lhe fazer companhia aos delírios? O velho não reagirá perante a beleza de Olíria? Não saltará do retrato como um louco ao vê-la despir-se? Aposto que é capaz de tudo...

- Levas sempre as coisas para o sentido mais negativo. Julgas as outras pessoas por aquilo que és.

Maida tornou-se vermelha como um pimentão e vociferou: - Que tens a apontar-me safado? Andas por aí metido no que muito bem entendes e pões-te agora a insinuar coisas acerca da minha seriedade? Nem escolhes as pessoas com quem andas. És um perverso!

- Sabes bem porque me tornei assim - defendeu-se Jusa. - Nunca violei o nosso combinado até ao dia em que Olíria nasceu. Depois dessa maldita noite é que mudei. Deixei de acreditar em ti. Não sabia o que se passava. Só anos mais tarde é que descobri. Mas nessa noite desconfiei de qualquer coisa. Não sei dizer como. Depois, confirmei. Que querias que eu fizesse? Querias que nada mudasse?

- Mas nunca te informaste acerca das circunstâncias em que isso aconteceu - replicou Maida com lágrimas nos olhos. - Nunca procuraste esclarecer comigo os pormenores, os aspectos fundamentais que me levaram a proceder dessa maneira.

- Não tenho nada que saber coisa nenhuma. A tua atitude foi suficiente para alterar o meu modo de vida. Até porque não podes provar que não voltou a acontecer.

- Nunca mais! Foi só daquela vez. Juro.

- A tua perturbação leva-me a pensar o contrário. Depois de se fazer uma vez está-se sempre pronto a fazer outras. De qualquer modo, aceitei. Só não me parece bem que me condenes por ter uma vida livre quando foste a primeira a quebrar o compromisso. Não tens de que te queixar. Nunca te cansaste de desabafar com a nossa filha acerca das minhas atitudes por fora. Deste-lhe uma imagem de mim totalmente falsa. Mas agora sentes remorsos porque temes que Olíria tenha sabido a verdade acerca de ti. Receias que se tenha desmoronado a ideia intocável que a nossa filha construiu sobre ti. Tudo está feito. Nada se resolve indo confundir ainda mais a cabeça de Olíria. Deixa-te estar aí sossegada. És uma mãe modelo. Apesar de tudo o que lhe disseste sobre mim, Olíria compreenderá que tive motivos de sobra para fazer o que fiz. Não saberá quais se não lhe disseram. Mas poderá imaginar.

- Estou disposta a esclarecer tudo - berrou Maida, levantando-se e indo encostar-se à janela.

Jusa ficou impedido de ver a sua laranjeira e o mar. Não suportava olhar para Maida. Estava farto de toda aquela história. Há tantos anos que aguentava humilhações atrás umas das outras. E nunca se lamentara acerca da esposa. Nunca desabafara com ninguém. Maida não agira da mesma forma. Pela primeira vez desde há muitos anos, Jusa sentiu uma enorme vontade de chorar. Mas disse: - Não quero explicações! Passou muito tempo e não vale a pena reavivar a memória das coisas. Não quero ouvir nada. Que adiantaria isso?

- É para ficares a saber quem eu sou, realmente - disse Maida.

- Eu sei quem tu és. És a Maida. E basta.

- Falas de mim como se eu fosse uma pedra, ou uma cadela. Não mereço que me trates assim.

- Ninguém merece nem deixa de merecer as coisas. Somos o que somos e acabou-se. Não tenho de fazer juízos sobre a tua vida nem tens o direito de julgar os meus actos. Quem nos dá autoridade para isso? Será que as leis humanas justificam que julguemos o comportamento alheio? E quem sabe se fizeste bem? Não terás sido motivada pelos teus reais instintos? Que temos nós contra os instintos? Também somos instinto. Não está certo reprimir a natureza. É o que eu faço. Sou os meus instintos e pronto. Estou-me nas tintas para os preconceitos e para a moral. Faço o que quero. Não tenho que me justificar. Ages como entendes melhor. Não precisas de sentir remorsos pelo teu passado. Acaba com esses complexos de culpa. Se fizeste certas coisas, tiveste razões para isso. Agora, não quero saber quais foram. Liberta-te do que aconteceu. Só assim podes ser minimamente feliz. Esquece o que sucedeu. Esquece o que te magoa. Se já percebeste tudo em ti, aceita-te como és. Depois, torna-se mais fácil esquecer. Não te preocupes com Olíria. O seu caso não é dramático, embora não se possa dizer que seja vulgar. A nossa filha não tem tendências suicidas. Está a ser bem alimentada. Anda entretida a ver o mar, os rapazes, a laranjeira, os ares da noite. Olíria é livre. Mais livre do que nós. Ao menos, anda à procura de alguma coisa.







XIII



- Cheguei tarde porque estive sempre à espera que ele saísse ― disse Ana para Nino. - A pastelaria fechou às vinte e três horas e o homem nunca apareceu.

- Tens a certeza? - perguntou Nino.

- Certezíssima.

- Como é possível? Há aí qualquer coisa de estranho. O indivíduo deve ter ido juntar-se aos outros dois de que te falei e que não me deixaram urinar. Lembras-te deles no café?

- Perfeitamente. Garanto-te que nenhum deles abandonou a pastelaria enquanto estive à espera. Nem sós, nem acompanhados. E, pelo que me dizes, devo ter chegado lá poucos minutos depois de teres saído. Desencontrámo-nos por pouco. Eu segui-o, cheia de interesse, para ter alguma coisa para te contar, apesar de não perceber porque motivo andas preocupado com esses homens. Parecem-me pessoas normais.

- É um pressentimento. E como não há muito que fazer por aqui, vamo-nos divertindo.

- Não tens cara de quem anda divertido. Pelo contrário, pareces-me bastante apreensivo.

- Isso é impressão tua. Estamos aqui para descansar e conhecer o sítio. Um dia, podemos vir morar para cá...

- Não sei se estou interessada. Sinto-me cansada por ter esperado tantas horas...

- Há duas coisas que me despertam a curiosidade. A primeira é saber o que faziam aqueles indivíduos na casa de banho. Depois, se a pastelaria fechou às vinte e três horas, e nenhum deles tinha saído até essa hora, chega-se à conclusão que se escaparam por outro lado. Ou então, neste momento, eles ainda lá se encontram. O que não é muito provável porque o empregado deve certificar-se de que toda a gente saiu antes de fechar a porta da rua. Informaste-te se não havia outra saída?

- Claro. Foi a última coisa que perguntei ao empregado, que até fez uma cara esquisita com a minha pergunta. E afirmou que a porta onde eu me encontrava era a única saída da casa.

- O caso não é muito vulgar. Será que existe alguma passagem secreta na casa de banho da pastelaria?

- Isso não sei.

- Estou certo de que durante o tempo em que estive à espera de urinar não vi qualquer janela. É possível que estejam a tramar alguma coisa. Não acredito que aqueles tipos durmam na casa de banho. Quando os vi pela primeira vez, tive uma desconfiança. Mas não me perguntes porque não sei dizer mais nada. Talvez tenha sido o tipo de conversa que mantinham uns com os outros. Ou apenas as suas expressões. Ou até o simples modo como estavam sentados à mesa. Não sei... Mas tudo aponta para que estejam a forjar alguma.

- E que temos nós a ver com isso?

- Nada..., nada. É só curiosidade da minha parte. Acredita que é só isto.

- Continuas a não convencer-me. Ouviste alguma coisa enquanto esperavas nos lavabos?

- Nada. Estavam completamente silenciosos. E nem se moviam. Pareciam estátuas vestidas.

- Eu também não vi qualquer coisa que me prendesse a atenção no homem que segui. Até ao momento de o ver entrar na pastelaria. Só achei estranho que ele nunca mais saísse. E quando a pastelaria encerrou as portas, fiquei sobressaltada e estive quase para dizer ao empregado que havia gente na casa de banho. Mas pensei melhor e decidi calar-me. Porque não acredito que eles tenham decidido passar lá a noite. O empregado tê-los-ia mandado embora.

- Acho que tens razão. Devem ter saído da pastelaria de alguma forma. Sem que tenhas notado.

- Tudo é possível. As hipóteses são muitas. Penso que nada temos a ver com isso e que devemos afastar-nos para não nos envolvermos em alguma coisa desagradável.

- Está bem. Não se fala mais no assunto, para não ficares com ideias que não correspondem aos factos. Vamos deitar-nos. E descansa. Amanhã vamos dar um passeio pela beira-mar. Vamos cheirar o sal. Ver as ondas de perto. Como tu gostas.

Ana despiu-se e enfiou-se na cama. Puxou os lençóis e o cobertor para o queixo. Apertou as pernas uma contra a outra. Dobrou os joelhos. Voltou a estender as pernas. Depois, atirou de repente a roupa toda para o fundo da cama, descobrindo-se. Ficou nua sobre o lençol branco. Soergueu a cabeça, pôs-se a mirar os seus pés, mexeu os dedos, como se estivesse a tocar piano contra a roupa amontoada nos pés da cama. “Esqueci-me de cortar as unhas dos pés”, pensou. Sentou-se e voltou a cobrir-se. Só então estendeu o braço esquerdo para a mesa-de-cabeceira e desligou o candeeiro, perdendo-se no escuro. Fechou os olhos. Recuperou a claridade. Era uma luz vaga. Pouco intensa. Ocupava todo o espaço que os seus olhos alcançavam. Como se uma onda imensa estivesse a dois palmos do seu nariz. Desviou a cabeça para trás e notou que a onda recuava. Como se a imitasse. Depois daquela veio outra onda, que também recuou na altura exacta em que ela voltou a afastar a cabeça. Outras ondas apareceram como se de propósito para a intimidar. E afastavam-se a seguir, obedecendo aos movimentos de cabeça que fazia. Sentiu algo que lhe magoava as costas. Desviou-se para o lado, mas continuou a sentir a mesma impressão desagradável. Levantou-se e olhou. Era uma pedra arredondada e lisa que se havia interposto entre o seu corpo e o lençol. Ana tomou-a e deu uns passos em frente sobre as rochas. Evitou os limos e o musgo para não escorregar. A água molhou-lhe os pés. Ao saírem debaixo das pedras sobre as quais ela se encontrava, as ondas espumavam e fugiam para o alto mar, indo com certeza rebentar longe, onde encontrariam outras rochas para bater. Nas suas pernas é que não, disso estava Ana convencida. As ondas nasciam sob as pedras, mesmo junto aos seus pés, e corriam para longe. Como se ao vê-la entrassem em pânico. Ana curvou-se sobre o lado direito e estendeu o braço para trás. Tinha uma pedra redonda e lisa apertada entre os dedos finos. Concentrou-se, rodou o braço duas vezes e, à terceira, arremessou a pedra para o mar com todas as suas forças, tentando fazê-la rasar a superfície da água. A pedra seguiu disparada e foi diminuindo de tamanho, até que se perdeu na espuma. Sem que nada o fizesse prever, a espuma cresceu de tamanho. E era tanta e tão buliçosa que a onda foi perdendo força na sua caminhada para o mar alto. Parando, parando, a onda parou. Mas lentamente readquiriu forças e começou a andar em direcção ao sítio onde Ana se encontrava. Ao contrário de todas as outras, aquela onda vinha para terra. Ana viu-a caminhar cada vez mais rapidamente. Crescendo de forma ameaçadora. Branca, toda espuma, rugia, fazendo com que Ana começasse a ver tudo branco à sua frente, claro como uma luz vaga. Tapou os olhos com as mãos quando calculou que a onda não estaria a mais de dois palmos do seu rosto. Então, sentiu o corpo todo mole e a pele espumante, uma sensação doce que a transportou para dentro da onda. Ana deixou-se ir. Não teve medo, não gritou, não chamou por Nino. Percorreu a onda por dentro e achou que era cheia de surpresas, apesar de só ver brancura e pequenas bolhas de água rodopiando à sua volta. Parecia que estava metida numa forma de algodão com as dimensões exactas do seu corpo por dentro. A onda tornou-se gradualmente mais branca. Uma luz viva foi crescendo do lado onde estava a janela do quarto. À medida que ela abria os olhos, a luz ganhava uma cor amarelada. Amanhecia.

Ana sentiu as pernas húmidas, quentes, amolecidas. E quando se levantou viu que o lençol tinha uma mancha clara e recente. Uma poça de água no seu lençol. Mar salgado. A onda passara por ali. Era mesmo verdade que tinha estado dentro de uma onda. Uma onda autêntica que a deixou entrar e conhecê-la. A prova estava no lençol. E no súbito estremecimento do corpo.







XIV



A terra tremia com frequência perto da casa de Olíria. Há muito tempo que se ouvia dizer que naquela zona a terra estava em permanente risco de desabar. A casa de Olíria ficava a dois passos do abismo. E o quarto onde se encerrara era no extremo da casa. Depois da janela de Olíria, só havia a laranjeira, um naco de terra arenosa que formava o quintal e logo a seguir o abismo das rochas até ao mar, com as pedras húmidas em baixo, onde o musgo secava e as bolhas de mar saltitavam. As ondas batiam contra as pedras, a vibração do choque passava às rochas e a terra ressentia-se, tremendo. Era preciso estar muito atento para se dar conta dos abalos de terra. Há quantos anos batia o mar ali? Desde sempre. Se a terra desabasse, a casa corria o risco de desaparecer. O quarto de Olíria também. E Olíria? Não sabia dessa eventualidade quando decidira fechar-se entre quatro paredes? Desde pequena que Olíria ouvia contar que o mundo ia começar a desaparecer junto da sua casa. Habituou-se tanto a esta ideia que já nem a receava. E nem se recordava, sequer, de alguma vez ter ficado com medo de que o fim do mundo se iniciasse pelas traseiras da sua casa.

Mas as previsões do povo a esse respeito ainda não se tinham verificado. A terra dava mostras de estar jovem e fresca, não se deixando levar pela vibração que o ímpeto das águas provocava no solo. As rochas mantinham-se firmes como gigantes nocturnos, observando com indiferença a batedeira do mar nas pedras. Os rochedos pareciam alegrar-se interiormente com a sua própria resistência. Nunca se vira tanta pancada. O mar investia interminavelmente contra a terra. Ao longo dos anos, Olíria foi provavelmente adquirindo a convicção de que a terra resistiria. Que os boatos não tinham fundamento.

Os rapazes, acompanhados das irmãs, mães, esposas, iam recolher o musgo diariamente. Não receavam que a terra desabasse. O coração deles estava em íntimo contacto com a natureza. E saberiam de antemão se algo estivesse para acontecer. De contrário, não arriscariam a vida por uns míseros nacos de musgo. Procurariam outra ocupação.

No fundo de si, porém, Olíria alimentava o sonho de, um dia, presenciar a cena da terra a desconjuntar-se. Os prenúncios disso podiam muito bem ser o aparecimento de fendas. Nessa altura, ela veria como era a terra por dentro. E talvez conseguisse apanhar-lhe algum segredo. Entender algo mais de si mesma. Conseguir elementos novos ou indicações claras que a levassem a ter mais facilidade na visão das relações que as coisas estabeleciam entre si.

Tempos depois do aparecimento das primeiras fendas, decerto que uma porção de terra acabaria por se deixar cair pelo abismo. E a paisagem transformar-se-ia.

Se não fossem os riscos que ela correria, então, o fenómeno só poderia ser intelectualmente lucrativo. Olíria esperava que os desabamentos não chegassem a atingir a laranjeira. Que as suas raízes ficassem protegidas. Sempre era a laranjeira de Jusa.

Se a terra desaparecesse, até levar consigo a árvore, isto significaria que a casa não tinha as condições básicas de segurança. Estaria ela a fazer namoro à morte?

Olíria achava que não. Simplesmente gostava do risco, da aventura, dos acontecimentos grandiosos e invulgares. Porque não havia de confessar a si mesma que se habituara de tal modo à ideia de a terra desabar que neste momento quase desejava que isso acontecesse? E para onde iriam as suas coisas? Não havia problema. Barba Branca ouvia-a e aceitava tudo quanto pensava e desejava. A prova disso é que se mantinha silencioso, dissesse ela o que dissesse. Mas aceitaria mesmo? Havia ainda a hipótese de o velho se estar a aproveitar desta fase de grande intimidade entre ambos para analisar rigorosamente a evolução do pensamento de Olíria, o percurso das suas emoções, a deseconomização da sua sensibilidade.

Se calhar, devia prestar mais atenção à inteligência do amor que os unia. Ele seria tão submisso como parecia à primeira vista. Olíria não tinha dúvidas de que Barba Branca sentia os tremores de terra como ela. As suas ocultas vibrações dando respostas secretas ao mar, a sua raiva malcontida, a sua irritabilidade, o seu desassossego, o seu inconformismo.

Barba Branca era bastante mais intuitivo do que ela. A passagem de Olíria pela universidade minara-lhe o instinto. A experiência truncara-lhe o ser natural. Fora uma verdadeira amputação. Uma aprendizagem da cegueira pela manipulação primária dos professores. Uma sofisticada castração da qual só mais tarde se dera conta.

Barba Branca nunca frequentara uma escola. Conseguira escapar ao ensino, o que fizera com que a sua cabeça passasse ao lado das normas decadentes das ciências. Nunca lera um livro em toda a sua vida. Uma ou outra referência que pudesse ter, fora ela que lhas dera.

Olíria ouvira dizer que Barba Branca sempre se recusara a falar de escolas e professores enquanto era vivo. Constava que dizia não ter respeito pela estupidez institucionalizada e que jamais teria ido a Lisboa, apesar de ter vivido a duas horas de distância da cidade descolorida.

Desde a sua morte, o retrato de Barba Branca não voltara a sair do quarto de Olíria. E ali permanecia calmo e quieto, amarelecido pelos anos. Era difícil conhecer bem Barba Branca. Possuía uma impetuosidade que Olíria procurava seguir até ao fim.

Como eram diferentes as pessoas quando estão vivas. Ou com a morte penetrando aos poucos nos seus órgãos sem darem por isso.

Olíria ignorava se Barba Branca já teria conhecimento de que se previa o desabamento da terra nas traseiras da casa. Imaginava o que sentiria.

Surpreendentemente, às vezes, Barba Branca deixava-lhe a nítida impressão de ser medroso. Apesar da sua evidente coragem.

A primeira coisa a desaparecer seria a laranjeira de Jusa. Depois, o quarto de Olíria. Não, inicialmente, talvez só uma parede. Ficaria sem janela. Ou melhor, sem vidraça. Porque a janela passaria a ser do tamanho da parede ruída. Depois, havia de desmoronar-se a casa toda.

E outras casas deveriam seguir-se. As pessoas entrariam em pânico, um sentimento que residia desde sempre no seu inconsciente colectivo. No caso de Olíria, havia um desafio. Fechara-se no quarto para o provar. Manteria firme a sua decisão, independentemente do que acontecesse. O que seria uma antecipação do fim do mundo. Se este desaparecesse, como se dizia, ficaria a certeza da ineficácia das bombas que os governos andavam a fabricar em série. A humanidade teria um fim natural.

Os tremores de terra deixavam ressonância no peito, como minúsculos chocolates de pólvora a explodir no estômago. As bombas eram limões atómicos monstruosos que os governantes faziam rebentar por cima dos povos. Ultimamente, não tinham passado muitos barcos diante da janela de Olíria. E as nuvens eram poucas, também. Os rapazes do musgo é que nunca falhavam. Vinham todos os dias. Quando a maré estava baixa. Faziam parte da sua intimidade.

Se pudesse, Olíria saltaria pela janela e iria falar com eles. Mas esse gesto significaria a quebra do compromisso que fizera consigo mesma. Nem a Lua tinha vindo com a frequência habitual visitar as traseiras da sua casa. Eram fases. Ao que parecia, também ela receava o desabamento das terras. Um pássaro fizera um ninho na laranjeira de Jusa. Dali, a um nível superior ao da árvore, viam-se os ovos, como amêndoas.

O pássaro costumava repousar durante algum tempo. Às vezes, um companheiro vinha visitá-lo e fazia-lhe carícias no bico amarelo. Os beijos dos pássaros eram curiosos. Será que preferiam os bicos a uns lábios carnudos e tenros? Desde que fizera o ninho na laranjeira, o pássaro deixara de pousar no parapeito da sua janela. Olíria compreendia. Andava a ocupá-lo muito. Então, o pássaro não vinha. Se calhar, também receava Barba Branca. Acha-lo-ia agressivo, provavelmente. Um velho tão sereno e solidário. Ou talvez não fosse medo o que o pássaro sentia. Devia ser falta de à vontade. Tinha uma sensibilidade muito aguda.

Olíria desviou os olhos do ninho, afastou-os da laranjeira e colou-os no fim do quintal. Fechou as pálpebras e voltou a abri-las, como se a certificar-se de qualquer coisa. Olhou, de novo, apreensiva. As suas pupilas seguiram uma linha irregular e regressaram ao ponto de origem. Por fim, sorriu, nervosa. Mas o gesto que fez com os lábios pareceu contribuir para uma maior descontracção no seu corpo. Pôs-se na ponta dos pés, inclinou-se sobre o parapeito, abriu a boca em silêncio, olhou para trás, para dentro do quarto e viu que Barba Branca estava distraído. Levou as mãos ao rosto, sentiu-se corar. O seu olhar voltou a fixar-se no fundo do quintal. Havia um grande silêncio à volta. Só cortado pelo barulho das águas além do abismo.









Movimento





XV



Nesse dia, Maida foi ao quintal e ao ver a fenda ficou tomada de pânico. Deitou a correr para a rua gritando que vinha aí o fim do Mundo. Juntou-se muita gente à porta de sua casa e a notícia alastrou com a rapidez dos pensamentos. Não se falava noutra coisa. Das consequências trágicas que a fenda no quintal de Maida podia trazer à população. Durante todo o dia se discutiu o assunto da fenda, em grupos de gente distribuídos por todas as esquinas. Era visível o sentimento de impotência colectiva nos olhos das pessoas.

Pareciam formigas atónitas pela ameaça de um qualquer triciclo que passava. A que se deveria o aparecimento da fenda? Que fazer agora que a terra ia desmoronar-se? Como travar o ímpeto do mar contra as rochas? O povo fora surpreendido pelas vibrações da terra. Não havia tomado a atenção suficiente. Não pensara em alternativas. O Governo nunca tomara medidas de precaução construindo em outro sítio casas para onde as pessoas pudessem vir a ser transferidas em hipótese de catástrofe. Os ditos antigos sobre o possível desabamento da terra estavam prestes a ser confirmados. Era um castigo, na opinião dos mais velhos. O Mundo estava perdido. A começar por ali, onde as casas há séculos escondiam a sua ruindade. As pessoas eram perversas. Faziam tudo às claras. Antigamente, também se fazia coisas, mas havia o cuidado de o fazer às ocultas. A culpa era dos jovens, que nadavam em mares de droga. Perdera-se a vergonha, os escrúpulos, a responsabilidade. Desafiava-se Deus e a Natureza. Pois não era verdade que os rapazes se davam ao desplante de ir todos os dias recolher musgo nas horas de maré baixa ali mesmo por trás da casa de Maida? Exactamente onde se abrira agora a primeira fenda? E Olíria fechada naquele quarto há tantos dias, vendo os rapazes saltitar sobre as pedras húmidas. Seria simples coincidência? Antes de Olíria se fechar no quarto, os rumores sobre um eventual aluimento de terras nunca se tinham verificado. Mas Olíria enclausurou-se e pouco tempo depois a terra começou a enfraquecer. Então, apareceu aquela fenda no quintal de Maida. O que era indício de maldição. Em outros tempos é que as coisas corriam bem. Não havia tantas doenças, nem tanto descaramento, nem subversão moral, nem destemor às leis. Que o Governo tomasse medidas, antes que fosse tarde demais. O sítio estava em riscos de desaparecer levado pela fúria da terra.

Não esperassem que o mar deixasse de se atirar contra as rochas. Era preciso convencer as autoridades dos perigos que a população atravessava. Foram informar quem de direito. Os responsáveis prometeram envidar todos os esforços junto dos ministros de Estado para que a situação fosse resolvida o mais brevemente possível. Mas, no fundo, as pessoas não davam crédito aos políticos. Por isso, o terror não deixava de se expandir. As opiniões precipitavam-se e os pressentimentos distorciam-se. Ninguém dava mostras de estar descansado enquanto não aparecesse um responsável pela fenda que aparecera no quintal de Maida.

- O meu marido subiu uma vez à laranjeira - disse Maida, falando para as pessoas que a rodeavam com olhos de quem não queria acreditar. - Vocês conhecem Jusa. É capaz das coisas mais mirabolantes. Penso que a sua atitude pode ter irritado a laranjeira que temos lá no quintal. E as árvores também gostam de ser respeitadas. Portanto, quem me diz que a laranjeira não estendeu as suas raízes pela terra dentro, irada com o comportamento do meu marido?...

- Se for assim - comentou uma solteirona bochechuda - talvez o perigo não seja tão grande. Arranca-se a laranjeira do quintal de Maida e o problema fica resolvido.

- Fiquem todos descansados que a minha filha nada tem a ver com essa fenda - adiantou Maida. - Está fechada no seu quarto e por isso não se pode dar ao luxo de fazer coisas que provoquem a ira de Deus ou da Natureza.

- Mas ninguém nos garante que, durante a noite, Olíria não permita a entrada de alguém pela sua janela - ouviu-se dizer.

Maida levantou a voz contrafeita e disse: - Vocês sabem que a minha filha não é capaz de fazer as coisas que estão para aí a pensar. Vou muitas vezes à porta do quarto de Olíria e não ouço nada. Nesta terra, ninguém se pode queixar da minha honradez e dignidade de princípios. Olíria isolou-se de nós porque entendeu que o devia fazer. Penso que Jusa pode ter mais responsabilidades no aparecimento da fenda do que a minha filha. Nos últimos tempos, Jusa parece não andar bom dos miolos. Se na minha casa alguém tem a ver com a fenda que se abriu na terra, essa pessoa nunca poderá ser Olíria, que é uma santa de capela. Vejam como se isolou do mundo para fugir à perversão.

- Eu sou amigo de Jusa - disse um homem calvo e de barba por fazer. - Estás a ser injusta com o teu marido. Jusa é um bom homem. Conheço-o há muito tempo. E sei que é incapaz de nos prejudicar seja no que for. O facto de ter subido à laranjeira nada tem a ver com os abalos de terra. Há muitos anos que sinto o mundo alterado por dentro. Isto muito antes de Jusa ter ido fazer essas coisas no alto da árvore. Temos que ser realistas e não arranjar bodes expiatórios para um fenómeno natural que nos compete aceitar com serenidade. Temos é de actuar para que o Governo resolva o problema quanto antes.

- És um subversivo - vociferou uma mulher de lenço preto na cabeça. - Ao não poupar o próprio marido, Maida estava a dar um exemplo de coragem.

- A filha é que tem a culpa de tudo isto - gritou um homem de óculos espelhados que até aí se mantivera calado. - Não acreditem em Maida. Todos sabemos bem quem ela é. Ouvi dizer que Olíria tem poderes estranhos nos olhos. Que está sempre a fixar as coisas e por isso não ouve bem o que lhe dizem. Os pensamentos de Olíria sobrevoam Saturno. E não me convenço de que esteja fechada no quarto há tanto tempo sem que tenha metido alguém pela janela. Não vamos ser comidos por tolos.

- Que queres dizer com isso? - perguntou Maida fora de si e com muitas veias salientes no pescoço. - Eu faço o que me apetece. Falas assim porque trazes as costas quentes. Toda a gente sabe porque morreu a tua mulher! Jusa tem mais tino do que tu e sempre me respeitou. É possível que as raízes da laranjeira nada tenham a ver com a fenda. O problema é do Governo que não toma medidas.

- Anda por aqui um homem, nos últimos tempos, acompanhado de uma miúda - disse Thomas, que aparecera ali há coisa de cinco minutos. - Está sempre com um jornal debaixo do braço e ao que parece não trabalha. No outro dia, esteve a espiar-me e ao Vabor.

- Como é esse homem? - perguntou Maida.

- Tem à volta de uns cinquenta anos. Nemo disse-me que foi seguido esta semana pela miúda que anda com ele. E que ela esteve de plantão à sua espera até às onze da noite.

- Que idade tem a miúda? - voltou Maida a perguntar.

- Talvez uns doze anos - respondeu Thomas.

- Tu, que conheces bem Olíria - disse Maida, parecendo querer mudar o rumo da conversa. - Achas que ela tem alguma coisa a ver com os tremores de terra e com essa fenda que apareceu no quintal?

- Parece-me que não - respondeu Thomas. - Olíria é uma moça impecável. Esse homem que anda com o jornal debaixo do braço é que me dá a impressão de ser esquisito. Além disso, tem um apartamento onde fica sozinho com a miúda. Sabe-se lá o que andará a fazer por aqui. Já temos provas de que nos espia. Acho que é uma pessoa suspeita.

Maida não conseguia esconder o seu nervosismo ao ouvir Thomas falar daquele modo. Os seus lábios tremiam. E os olhos estavam tristes, quase suplicantes.

No fim desse dia em que o povo viveu horas de agitação fora do comum, Jusa regressou a casa, vindo da cidade. No momento em que metia a chave à porta, uma vizinha assomou à janela e disparou-lhe: - Já sabes o que se diz por aí?

- Não - respondeu Jusa, pensando logo se o assunto teria a ver com Olíria.

- Estamos todos cheios de medo - continuou a vizinha. Dizem que temos cá um terrorista que anda por aí disfarçado com um jornal debaixo do braço e que vive com uma miúda de doze anos! É ela que transporta as armas dentro de uma pasta de cabedal. Diz-se que a casa onde o terrorista pernoita com a menina é um autêntico depósito de armas. Até se conta que muita gente já viu a rapariga pegar numa pistola e aponta-la às pessoas que passavam na rua.







XVI



Depois de a terra se fender, os rapazes não tinham voltado a aparecer para recolher o musgo. Deviam temer os desabamentos. Havia um zunido por todo o lado. O musgo secava nas pedras quando a maré estava baixa e, quando subia, as ondas levavam-no de volta. As pedras adormeciam de ventre ao sol. O mar andava calmo, desde que aparecera a fenda no quintal. Pelos vistos, não queria que a terra se desmoronasse. O mar preferia deixar as pessoas sofrer com a dúvida. Tudo estava suspenso da sua vontade.

Olíria sentia-se bem. Não se tinha revelado assim tão difícil a experiência de clausura voluntária. De nada lhe servia viver fora do seu quarto. As suas emoções reagiam mal e as ideias eram-lhe impostas. Ela própria reprimia os seus desejos.

Era absurdo viver no mundo. Ultimamente, tudo era diferente no seu dia a dia. Até se notava que Barba Branca já não era a mesma pessoa. O que não admirava, dada a exclusividade da sua companhia.

Ultimamente, Barba Branca olhava mais para a janela, mas ainda não se devia ter apercebido da fenda no quintal. Assim era melhor. Olíria não tencionava dizer-lhe nada, a fim de lhe evitar momentos de angústia e sofrimento.

Barba Branca estava com outro olhar porque a via mais calma. Olíria sentia que estava na fase mais livre da sua vida. Nunca a sua cabeça vagueara tanto e por tantos lugares como naqueles dias que tinha passado com Barba Branca. Agora, era cada vez mais dona de si mesma. Não odiava a sociedade humana. Mas que alegrias lhe dera ela? Que alternativas lhe concedera para além da rotina e da violência? Olíria não estava disposta a ser um simples número, um símbolo no mercado de carne humana. A matemática era uma ciência odiosa porque tentava exprimir a realidade através de conceitos abstractos. Mas a realidade era como era e não como a matemática a fazia.

Olíria tornara-se muito terra a terra. Assim, resolvera todos os seus preconceitos. A matemática só tinha a ver com a sociedade de consumo. As pessoas perdiam a capacidade de reacção perante as injustiças exactamente devido à maléfica influência dos números, que eram conceitos amorfos e estáticos. Na generalidade, as pessoas davam-lhes muita importância. Inconscientemente, viviam, sentiam e pensavam em termos de números. Por isso, não surpreendia que os humanos fossem perdendo o sentido do real. Os números eram a causa de todos os problemas. Hoje, o ser humano era um ser abstracto, um conceito matemático. As coisas abstractas não se transformavam. O que não estava de acordo com a natureza, que mudava permanentemente. Que ela soubesse, a soma de dois mais dois sempre fora igual a quatro. Esta operação abstracta jamais sofrera alteração. O que era inadmissível. As pessoas tornavam-se como as operações matemáticas. Quando viam uma injustiça, ainda reagiam, num primeiro assomo de animalidade e instinto. Mas logo a seguir vinham os comunicados oficiais, as estatísticas, as contas, os números, enfim, e a gente acomodava-se. Ao longo dos tempos, a matemática fora tomando conta da vida dos seres humanos. Agora, era difícil fazer-lhes compreender as ilusões em que haviam caído.

Olíria seria considerada uma anormal, uma marginal. Daí a nada, começariam a responsabilizá-la pelas fendas abertas na terra. Diriam que tinha uma força estranha nos olhos. Insinuariam tudo e mais alguma coisa sobre a sua solidão.

No entanto, ela vivia mergulhada numa grande serenidade. O que fizera não passava de uma reacção prática e consciente contra a degradação cada vez maior da sociedade humana.

Olíria, ao menos, reagira. Ao passo que os que se diziam realistas e práticos se conformvaam com a produção em cadeia e com as ideias pré-fabricadas sem conteúdo, ou carregadas de moral. Por mais que se sofisticassem, não deixariam de ser animais com instintos incontroláveis. Reparassem no carro, essa fera metálica sem alma. As pessoas despendiam quase dois terços do seu tempo de vida para terem uma televisão, uma casa, um automóvel. Se soubesse que era para isto, Olíria preferia não ter vindo a este mundo. E ainda havia quem defendesse que as pessoas eram livres de escolher e que a publicidade não servia como desculpa. Tudo estaria certo se estivessem preparadas para saber escolher. A publicidade jogava com as lacunas evidentes do senso comum. Era como aceitar menores para trabalhar numa empresa explorando a sua incapacidade de reivindicação e desprotecção perante a lei para dizer a seguir que eles eram livres de trabalhar ou não trabalhar. Uma criança de cinco anos que se via ante a ameaça de uma pistola empunhada por um adulto que possibilidades tinha de escolher? Que liberdade tinha a gente asfixiada pela intempérie dos anúncios publicitários? Que decisões podiam tomar aqueles que, embora maduros fisicamente, eram comprovadamente menores na mente?

Olíria sentia necessidade de passar a um estado de não existência que a deixasse a flutuar no vazio do cosmos, sem forma, sem identidade, sem apetites, sem ilusões. Mas já que a haviam posto a respirar, fazia o que queria. Rejeitava normas, convenções, hipocrisias, chantagens, números, dados, ideias feitas.

Vivia de forma natural. Para o conseguir, tivera que se encerrar no quarto, a fim de não receber influências do exterior. Deste modo, havia de ir perdendo os vícios e defeitos adquiridos.

Por vezes, Olíria falava em voz alta só para despistar alguém que pudesse estar a ouvi-la atrás da porta. Falava das suas unhas dos pés e dizia que não gostava delas, mas as suas unhas dos pés eram perfeitas. Pelo menos, não tinha motivos para se preocupar com elas. O tempo curava tudo.

Cada vez se sentia mais mulher, mais ser humano. Olhava o mar, as pedras, o musgo, a laranjeira, o ninho, o pássaro, o céu, as nuvens... e sabia quem era. Tocava-se, apalpava-se, relacionava-se com o que estava fora dela, com as coisas insignificantes que existiam à sua volta. E conhecia-se melhor.

As suas ideias tinham passado a ser puras porque estavam intimamente relacionadas com os factos. O seu cérebro limitava-se a estabelecer ligações. Os raciocínios que elaborava assentavam em fontes sem mácula.

Deixava-se ir mudando com os seres reais. Ninguém conseguia separá-la do processo de transformação de matéria que gozava até às últimas conseqüências.

As ideias também mudavam, por isso eram puras. Se não mudassem, seriam apenas conceitos abstractos, fixos, imutáveis, como a matemática.

Olíria sentia que era paradoxal e contraditória, mas a natureza também o era. Que mal haveria nisso? Ou porque se havia de aceitar os paradoxos na natureza e condená-los nas pessoas? A realidade material não obedecia a um sistema de coerência. Embora toda a gente pretendesse passar por coerente.

Afinal, quem era idealista? Se Olíria procurava a natureza de forma obsessiva era porque desejava viver o maior realismo possível.

Sabia que nunca conseguiria voltar a ser completamente instintiva. Mas o que procurava alcançar era o modo como as coisas evoluíam, aplicando essa regra à sua vida. Não se importava de existir como um peixe ou um girassol. Queria era perceber como eles fazem, de que maneira conseguem atingir o equilíbrio que os seres humanos não foram capazes de manter através dos séculos. O que procurava era o método das formigas, das abelhas, das árvores. Tudo o que existia estava em harmonia com a natureza. Um equilíbrio entre rupturas. Um equilíbrio inteligente. O corpo de Olíria vibrava em liberdade. Como a terra.







XVII



Thomas, Vabor e Nemo estavam sentados numa das mesas do café de Quim, que fazia contas por trás do balcão. Na mesa do canto ao fundo, Roque entornava um bagaço, refrescando a velha dentuça que dançava nas gengivas arroxeadas. E desta vez o velho pareceu ficar mais tempo com os olhos esbugalhados na direcção do tecto, onde as moscas pastavam acrobaticamente suspensas da brancura da cal. “Quem teria inventado as moscas?”, parecia ele reflectir com cara de poucos amigos. E continuava a olhar para cima, mesmo depois de ter pousado o copo vazio.

Quim ostentava o seu meio-sorriso de sempre por baixo do bigode de carvão. Nunca se sabia bem em que pensava um empregado de café. Vabor mirava-o na tentativa de esquecer as borbulhas que lhe apoquentavam a pele do rosto. Dirigia o olhar para Thomas, distante, franzino. Nemo não parava de se mexer na cadeira como se tivesse comichão em todo o corpo. O cabelo puxado para trás e o queixo descaído davam-lhe um ar atontado de boca semiaberta. Nenhum dos três estava com muita corda. Pelos vistos, estariam a medir interiormente as conseqüências do que Thomas insinuara em público acerca do homem do jornal e da menina que o acompanhava. Teriam previsto que o povo chegaria ao ponto de os considerar terroristas? E que a miúda transportava armas sofisticadas numa pasta de cabedal? Thomas não parecia preocupado. Não era pessoa capaz de assentar arraiais no remorso prolongado.

- Porque disseste aquilo acerca do fulano do jornal e da miúda? - perguntou Vabor, sem visar Thomas particularmente, embora fosse óbvio que era a ele que se dirigia.

Mas foi Nemo a responder: - E depois? Qual é o problema? Não conheces o tipo. Não venhas agora armar em puritano. Estava uma confusão dos diabos por causa da fenda no quintal de Olíria. Até penso que Thomas fez bem em apontar o homem do jornal. O indivíduo não tem boa cara e anda por aí a espiar-nos nas casas de banho. Imagina se terá topado alguma coisa. Pode vir a querer tramar-nos. Depois do que Thomas insinuou é possível que se ponha a andar daqui para fora e não nos aborreça mais. Se calhar, o gajo é informador. Que querias que a gente fizesse? Também ninguém previa que iam promovê-lo a terrorista!

Vabor não replicou. Thomas parecia ter os lábios colados por uma resina de silêncio incómodo e desgastante. Vabor pensou no meio-sorriso de Quim. Pediu outra bebida com um sinal de cabeça. Sentiu vontade de estar em casa, deitado na cama, sem nada que fazer. Teria alguém em quem pensar: a mulher que há segundos atravessara a porta do café, rasgando de surpresa a claridade. Boas pernas, esguia, saia pelo joelho, andar desenvolto, era quanto bastava para Vabor desejar irresistivelmente a mornaça da cama, deixando-se assediar por pensamentos desconexos. Punha-se de barriga para o ar, sem programa, sem lógica e deixava cirandar os desejos sobre o corpo como um lençol vivo que o despertava para outros mundos. Pensava na mulher que acabara de atravessar a claridade da porta. As suas mãos desciam sobre o corpo, enquanto a imagem das pernas entrevistas há pouco se acentuava de tal maneira que ele dava voltas na cama sem se controlar. Quem o visse, di-lo-ia atacado por um demónio qualquer.

A mulher repentina na claridade era um factor determinante. Sem ela, nada feito. Via as suas pernas esguias passando com desenvoltura. Daquele modo, estava com quem lhe apetecia. Imaginava uma mulher e pronto. Ninguém saberia.

Era na cama, durante o dia, quando todos estavam ausentes, que Vabor encontrava a sua maior liberdade, recordando a imagem de uma mulher que passava na claridade da porta do café com pernas esguias, saia pelo joelho e andar descontraído.

À medida que se excitava, ao ponto de a sua carne ficar com a dureza de um tubo metálico, a imagem da mulher na claridade da porta começava a perder intensidade progressivamente. E sombras confusas erguiam-se diante dos seus olhos, substituindo-se ao corpo da mulher.

Nessas alturas, Vabor tentava fazer regressar a todo o custo a mulher com saia pelo joelho e andar desenvolto. Mas não era capaz. Deixava-se vencer.

Devido ao esforço descomunal que fazia, contudo, as pernas da mulher com saia pelo joelho voltavam a aparecer, embora já sem o fulgor das primeiras vezes. Mas desapareciam logo a seguir. Para voltarem a aparecer de novo. Desaparecendo outra vez. E assim por diante.

As aparições eram cada vez mais fugazes e claras, como se iluminadas por um flash de câmara fotográfica ou sucessivos relâmpagos silenciosos. Por fim, a imagem não regressava mais. Era então que as tais sombras indefinidas ressurgiam, martelando no seu cérebro, incansavelmente.

Durante todo esse tempo, Vabor massajava os ombros, a cabeça, os braços, o pénis. Às vezes, tinha a sensação de que conseguia afastar as sombras para longe de si. Mas enganava-se. Apesar de longínquas e de certa maneira suaves, elas estavam sempre por perto, ao ponto de o incomodarem. As sombras eram um conjunto sólido, ainda que desarticulado, como a outra margem de um rio, com ele do lado de cá.

Tinha a nítida sensação de que as sombras o controlavam como se tivessem origem em lábios crivados de monstruosos olhos verdes, fixos, profundos, até doer. Vabor pensava que a cor dos olhos das sombras provinha do reflexo da água dos rios. Começava a sentir as primeiras vibrações nas pernas, por dentro, correndo no sangue, desimpedindo as veias. Tremores fortes como os da terra que provocavam fendas nos quintais. Nesses momentos, já lhe era completamente impossível recuperar a imagem da mulher atravessando a claridade da porta. Era invadido por um sentimento de tristeza e de vácuo que o excitava de forma descontrolada. Procurava voltar à realidade, pensando que estava no seu quarto, que era quinta-feira, que estava rodeado de pensamentos disformes. Não se tratava de nevoeiro, como poderia parecer à primeira vista. Para lá da porta do quarto ficava o corredor que levava ao átrio de saída. À direita, a casa de banho. Ao lado, a sala de estar, com a mesa de vidro ao centro sobre a qual repousava um policial acabado de comprar. Aberto ou fechado, haveria sempre um policial sobre a mesa de vidro da sala de estar, um maço de tabaco e um isqueiro, um prato a fazer de cinzeiro.

O esforço para regressar à realidade fazia com que as sombras do outro lado do rio se fossem diluindo. As mais intensas desapareciam, ficando as ténues, graves e molengonas. Não eram sombras masculinas nem femininas. Todavia, eram plenas de autoridade.

Sentia a atracção vencer o sangue nas veias do corpo, caminhando alegremente para a floresta do seu baixo-ventre. Mas essa alegria contrastava com a tristeza e o vácuo que o dominavam nessas ocasiões. Fazia por pensar que tudo aquilo se resumia a uma descarga de energia como qualquer outra que contribuía para o descontrair. E que faria com que ele vencesse complexos, levando-o a estar em fantasia com quantas mulheres quisesse. Sem ter de se submeter à vontade delas.

Do outro lado do rio, permanecia apenas uma sombra, erecta e nítida, que se impunha com impressionante clareza.

O seu corpo tremia da cabeça aos pés, fazendo lembrar a terra junto à casa de Olíria. Depois, a sombra fragmentava-se e Vabor passava a ter na sua frente grandes títulos de jornais. Títulos de primeira página. Só que não conseguia ler o que diziam. Nem o conteúdo dos artigos. Por mais que analisasse as letras, não as compreendia.

Levantou-se e foi ver-se ao espelho. Encontrou no seu olhar uma expressão de alívio. Achava que devia contar a alguém o que se passava com ele. A ver se era um fenómeno comum. Tinha a certeza de que Thomas adivinhava os seus pensamentos. Talvez lhe falasse no assunto.

Thomas já devia saber tudo porque estivera a seguir as suas magicações, embora fingisse interessar-se pelas coisas na rua. Se calhar, toda a gente que olhava na direcção da claridade da porta e via mulheres descontraídas com a saia pelo joelho tivesse o mesmo problema.

- As pessoas andam à procura do terrorista - disse Thomas, cortando os pensamentos de Vabor.

- Vejo-o por aí com a miúda e ninguém tem coragem de o enfrentar - comentou Nemo.

- O tipo deve estar bem armado - replicou Thomas.

- Fala baixo - pediu Nemo. - Repara como Roque olha para o tecto. É quando tem o ouvido mais aguçado.

- Não façam mal ao terrorista - pediu Vabor, apreensivo. - Que vai ser da miúda que anda com ele? Deixem o homem sossegado com os seus jornais.

Quim enchia um copo sobre o balcão. E, pela primeira vez, desde que havia memória, não ostentava o seu meio-sorriso habitual. Tinha os olhos vermelhos. Vabor pensou se a sisudez inesperada de Quim não estaria relacionada com o caso do terrorista, os jornais, a claridade da porta de vez em quando interrompida por pernas desenvoltas e esguias de mulheres com saia pelo joelho. Talvez devesse contar a Quim o que se passava. Era provável que o empregado merecesse mais confiança do que Thomas.

Vabor foi assaltado por uma ideia que lhe pareceu brilhante. Roque era um velho pacato e experiente com certeza. Compreenderia melhor o seu problema do que qualquer dos outros ali presentes. Levantou-se e foi sentar-se na mesa de Roque, que nem pareceu dar pela sua presença. Embora agastado por não despertar a mínima atenção, Vabor desfiou toda a história da cama, dos títulos dos jornais e das pernas das mulheres na claridade da porta.

Roque não pestanejou enquanto Vabor falava a meia voz. Quando o silêncio caiu entre os dois, Roque fez sinal a Vabor para que olhasse na direcção do seu dedo trémulo, que apontava para o tecto, onde duas moscas perseguiam afanosamente uma terceira.

- Têm umas pernas magníficas - resmungou o velho. - Estou quase... - pôs-se a gemer, enquanto apertava as mão de Vabor entre as suas. - Nunca vi uma mosca como aquela. É deliciosa. Estão a tocar os sinos. A mosca vai pirar-se. Manda calar os sinos! - suplicou quase gritando. - Manda calar os sinos ou estamos desgraçados.

Toda a gente olhava na direcção da mesa de Roque. Vabor pensou que agora tinha sido mesmo apanhado no seu segredo. Ainda por cima com Roque colado às suas mãos. Dentro de horas, ninguém ignoraria o seu caso.









Mar






XVIII



Nino e Ana já tinham percebido que algo acontecera no medo colectivo. Os ânimos andavam alterados. Havia amontoamentos de pessoas nas esquinas. As conversas paravam a meio sempre que eles apareciam. As pessoas olhavam-nos com grandes olhos de rãs e calavam-se à sua passagem. As bocas do povo continham uma ferocidade mal disfarçada de silêncio acusador, calculadamente enraivecido. Ana perguntou a Nino se porventura sabia o que acontecera. Ele respondeu que não fazia a mínima ideia.

- Mas nota os olhares que nos lançam - dizia ela. - É como se nos quisessem matar.

- Não te preocupes - retorquiu Nino. - O problema é deles. Estamos cá a passar uns dias e não temos culpa do que por acaso possa estar a acontecer.

- Parece-me que andam a falar de nós. Por isso é que se calam quando nos aproximamos...

- És boa observadora. Há muitos anos que aqui venho e nunca tive qualquer aborrecimento. Não me davam muita atenção, mas também não procuravam intrometer-se na minha vida. E, de facto, noto que há uma espécie de ódio contra nós de há dois ou três dias para cá. Vou procurar saber o que se passa. Não quero ter problemas com esta gente. É um povo rude, que reage excessivamente por dá cá aquela palha. Faz lembrar uma matilha de cães acorrentados.

Nino calou-se e Ana percebeu qualquer coisa. Deu-lhe a mão. Seguiram na direcção da beira-mar.

- Estou com saudades do Tejo e das noites calmas de Lisboa - disse Ana para reavivar a conversa. - Porque não voltamos para casa?

- Tenho que passar cá mais uns dias - disse Nino convictamente. - Se quiseres, vou levar-te a Lisboa e regresso depois.

- De maneira nenhuma - interpôs-se Ana. - Não dormiria um minuto descansada se soubesse que ficavas sozinho nesta selva. Porque não me dizes os verdadeiros motivos da nossa vinda aqui? - suplicou, com uma expressão de doçura trágica no rosto.

- Isto é comigo - respondeu Nino visivelmente mal humorado. - Deves compreender que na minha vida aconteceram coisas antes de nos conhecermos. Algumas deles foram resolvidas, mas outras nem por isso...

- Eu já desconfiava de que alguma coisa se passava - disse Ana. - Sinto que estás nervoso. É certo que não devo interferir na tua liberdade, mas penso que as coisas estão sempre relacionadas umas com as outras. O que és hoje está intimamente ligado ao que foste e fizeste no passado.

- Mudei muito - cortou Nino, irritado com as perspectivas que Ana parecia trazer à conversa, com uma perspicácia verdadeiramente precoce.

- Mudar não significa que se tenha ficado liberto dos pesadelos, vivências e acontecimentos passados. Todos temos uma história com princípio, meio e fim - insistiu Ana, cada vez mais segura de si, enquanto Nino sucumbia gradualmente à sua agudeza de espírito. - Mudar é inevitável. Teria sempre acontecido, mesmo que não quisesses. As transformações que se dão em nós são uma reacção às experiências que nos marcaram. Se estamos tão próximos um do outro, sinto que é importante que nos demos a conhecer sem reservas. Se queres que eu te compreenda, deves falar do que te preocupa. Não posso adivinhar as coisas.

- Estás a querer despir-me por completo. Não devemos expor-nos inteiramente para que as relações não percam o interesse.

- Mas estás a esconder-me coisas. Ocultas-me dados importantes. E, assim, não tenho pistas para gostar de ti. Deixas-me angustiada e nervosa. Sinto-me perdida...

- Notas o cheiro do mar?

- Estás a desviar a conversa. Porque recusas debater os meus argumentos?

- Acho que podes ultrapassar esses sentimentos de angústia - replicou Nino. - Não interessa se te digo as coisas ou não. Não penses mais nisso. - Pôs a mão sobre o ombro frágil de Ana, que não respondeu. - Vamos saltar sobre as pedras - sugeriu. - Vamos cheirar o sal, apanhar o musgo e enfeitar o teu cabelo com uma coroa de pérolas salgadas. Estou sempre a pensar em ti...

Ana não dizia palavra. Caminhava como se não estivesse junto de Nino, como se nem o solo pisasse, como se não existisse.

Havendo Nino construído pedra a pedra a casa dos seus dias, de repente tudo se desmoronava em redor dela. Como se aquele homem que a acompanhava tivesse incautamente esquecido os alicerces da construção. Agora, Ana não tinha casa para viver, não tinha cortinados nas janelas nem cadeiras onde se sentar. O colchão onde dormira serenamente até então desaparecera sugado por um aspirador gigante. Nino havia resolvido grande parte dos seus problemas e dúvidas e, agora, faltava-lhe com o apoio. Recusava-se manifestamente a dar-lhe uma achega ao processo de conhecimento que ela encetara. Ana precisava de um sopro para regressar à vida. Um sopro que lhe trouxesse o chão firme de volta. Que lhe trouxesse as árvores, as casas.

Nino falava-lhe do mar, do cheiro a sal, do musgo. Era o regresso da dor. O mar era isso mesmo. A dor e mais nada. Que outra coisa seria a espuma das ondas senão um lençol de lágrimas nas manhãs frias? Os brancos véus de angústia em que se perde a noção de nós mesmos.

Ana mal sentia os pés no caminho. E não via para os lados. Só o espaço à frente dos seus olhos. O ar muito próximo dela, envolvendo-a como a um manto quente que não a deixava respirar à vontade.

- Está bem - disse para Nino, sem o olhar. - Amanhã, volto para a cidade. Não preciso que me acompanhes. Sei muito bem o caminho de casa.

- Se achas que é o melhor para ti. Mas não me importo de te ir levar. Ficarei mais despreocupado se não fores sozinha.

- Deixa-me fazer como quero. Os meus sentimentos não são importantes para ti. A partir de agora, serei eu a decidir a minha vida.

- Estás a exagerar. Queres então que este seja o nosso passeio de despedida...

- De despedida?

- Pois. Mas só por uns tempos. Por que dentro de dias irei ter contigo. Não consigo estar separado de ti por muito tempo. Ponho-me a pensar nos teus joelhos e nos teus pés...

- Isso é o que dizes. Não vejo que na prática seja assim. Já estás farto de estar comigo. Se não, impedias-me de partir.

- Não quero que te vás embora, mas reconheço que não tenho o direito de te contrariar.

Chegaram às rochas. Olharam para o mar ao fundo. Procuraram um atalho por onde descer. Ana foi à frente e estendeu para trás a mão que Nino segurou. Desceram cuidadosamente, buscando a terra firme com os pés. Cheirava a musgo, sal e limos. Não havia gaivotas nem barcos. Ana olhou o céu. As nuvens mantinham-se longe dos homens. Como se aterrorizadas com as fúrias que inundavam a paisagem. Nino mirava os cabelos de Ana, esvoaçando ao ritmo da segurança dos seus passos. Agarravam-se às saliências das rochas. Pararam uns segundos para respirar. Nino estava muito atento aos pormenores do percurso. Ana apontou qualquer coisa ao longe e disse: - Olha aquela casa tão perto dos rochedos e do abismo. Tem uma árvore no quintal. Está uma janela aberta. A do quarto das traseiras. Não vejo ninguém. Quem me dera viver ali. Ouvir o barulho constante das ondas num silêncio novo.

Nino estava com uma expressão muito tensa. Ana pensou que ele devia estar a reflectir sobre a sua próxima separação.

- Sabes o que eu fazia se vivêssemos naquela casa? - perguntou Ana. - Fechava todas as portas e janelas, excepto a que dá para as traseiras e que permite ver o mar. Depois, nunca mais saíamos de lá. Era a reclusão voluntária do par ideal, Nino e Ana.

Nino não comentou. Mas notava-se que fazia esforço para manter os olhos afastados da casa que Ana apontava como a mansão dos seus sonhos. Nino tinha os músculos da face estranhamente contraídos. Como se uma dúzia de ratos se aprestasse a invadir-lhe o corpo.







XIX



Afinal, Thomas não se lançou ao mar conforme Olíria receara naquela viagem em que o seu estômago não suportou a ondulação. Ela pôs toda a gente em alvoroço com os seus gritos. Suplicou que o trouxessem de volta, que procurassem em toda a parte. O navio parou os motores. Alguns passageiros mais afoitos saltaram para o oceano, mesmo vestidos, mergulhando nas águas frias, em busca do corpo de Thomas. Outras vasculharam em todos os camarotes, nas bagagens, debaixo das mesas, nos lavatórios. Thomas não estava em lado nenhum. Horas depois, foram encontrá-lo na casa das máquinas, tentando pôr o navio de novo em marcha. A primeira e única explicação que Thomas deu a quem o encontrou foi esta: “Sou D. Afonso Henriques e estou a desviar o barco para a ilha o Corvo!”

Claro que não levou a bom termo os seus intentos. Porque nem sequer conseguiu pôr as máquinas em funcionamento. Olíria ficou contentíssima depois de Thomas ter aparecido são e salvo. Só lhe causou uma certa estranheza que ele continuasse a afirmar a pés juntos ser D. Afonso Henriques em pessoa.

Depois de abandonar a casa das máquinas, Thomas jamais voltou a falar da ilha do Corvo. Foi a primeira vez que Olíria ouviu alguém referir-se àquele lugar. Mais tarde, veio a saber que se tratava de uma ilha situada no Atlântico, pertencente ao arquipélago dos Açores. Thomas nunca lhe explicou porque queria desviar o cruzeiro para lá. Mas a teimosia quanto a D. Afonso Henriques manteve-se. Mais tarde, combinaram que ele iria ao quarto dela, numa das próximas noites, para estarem à vontade. Olíria desceria uma corda pela janela a uma determinada hora e ele faria o resto. Tiveram o cuidado de marcar esse encontro para uma noite de Lua nova, desejando que o mar estivesse embravecido.

Aconteceu tudo como previsto. Maida e Jusa foram cedo para a cama. O barulho das ondas ouvia-se de tal maneira como se o mar rebentasse contra as paredes traseiras da casa.

Olíria foi várias vezes à janela ver se os seus receios se confirmavam. Mas era só a força do mar contra as pedras. A terra vibrava por dentro como o útero de uma mulher na hora de parir. Tinha ficado assente com Thomas que ela desceria a corda da janela para o quintal quando batessem as duas horas da madrugada. A noite estava de tal modo escura que as estrelas pareciam querer despenhar-se a qualquer momento.

A vontade de Olíria era deixar de ser virgem quanto antes. No cruzeiro, Thomas revelara-se estranho e débil do estômago e eles haviam perdido a sua grande oportunidade. Agora, porém, que Thomas insistia ser o próprio D. Afonso Henriques, ela achava que isso teria consequências positivas no campo do amor. Não lhe restavam dúvidas de que no dia aprazado Thomas engoliria a distância que separava o quintal da janela do seu quarto num espaço de poucos segundos e que se lhe apresentaria a estrebuchar de forças, bruto, animalesco, descomplexado, como ela imaginava o primeiro rei de Portugal.

Na sua ideia, Thomas nem lhe daria tempo para respirar ou despir a camisa de noite. Abrir-lhe-ia as pernas sob a ameaça irresistível da sua espada descomunal e ela não hesitaria em submeter-se ao seu ataque.

Entregar-se-ia nos seus braços sem receios nem dúvidas. Tudo estava preparado para que aquela noite de Lua nova e mar bravo se tornasse inesquecível nas suas vidas, significando a perda de todos os seus receios.

Ninguém poria em questão a virilidade de um homem que apregoava aos quatro ventos ser o verdadeiro D. Afonso Henriques. Mas como eram sobejamente conhecidas as qualidades teatrais de Thomas, Olíria desconfiava que a história do rei tirano não passava de um artifício consciente da parte dele para ultrapassar o complexo da fragilidade do seu estômago. E não tinha dúvidas de que o próprio Thomas se riria interiormente das pessoas que troçavam dele. O que interessava a Thomas, pensava ela, era resolver o seu problema de estômago. Ele era inteligente bastante para brincar aos teatros consigo mesmo. Para se auto-ridicularizar em público, sem medo que isso levasse a pensar outras coisas. E se Barba Branca ainda gozava da fama de não gostar de mulheres, Thomas era conhecido como um macho imbatível a quem todas se rendiam ao primeiro golpe de olhar ou de espada. Tudo devido à convicção com que afirmava ser D. Afonso Henriques.

Olíria esperava nervosa no seu quarto. Aproximava-se a hora da chegada do rei. Aquele seria o seu grande dia.

Muito antes da hora estabelecida para o encontro, já a corda balouçava na janela de vidraças escancaradas, enfurecida pelas rajadas de vento que o mar atirava contra as paredes da casa. O vento encarregar-se-ia de dar uma mãozinha a Thomas, ajudando-o a trepar rapidamente até à janela.

A certa altura, Olíria notou que o nervosismo e a impaciência a assaltavam ao ponto de ela percorrer o quarto em repetidas passadas firmes ritmadas segundo o bater do seu coração. Quem a visse naquela noite andar em todas as direcções da escuridão pensaria decerto que se tratava de Maida a vigiar-lhe os sonhos. Porque desde a viagem de barco com Thomas passara a ter pesadelos. O sonho era sempre o mesmo. Via tudo branco à sua frente. Atirava a cabeça para trás e apercebia-se de que a tal brancura era a espuma de uma grande onda que se formava sob as rochas, afastando-se a grande velocidade para o mar alto. Depois desta, outras ondas se seguiam sem descanso. Até que uma delas, a meio da viagem, perdia força progressivamente e, invertendo o seu percurso, atirava-se numa corrida desenfreada para o lugar onde Olíria se encontrava. Sobre as pedras, de pés descalços, a onda vinha..., ela via outra vez tudo branco e era levada finalmente pela sua fúria de sal. Nessa altura, acordava e soltava um grito estridente. Fora em atenção a isso que Maida lhe vigiara os sonhos durante algum tempo.

Olíria olhou o relógio. Faltavam dez minutos para as duas da madrugada. O vento fazia balouçar na parede o retrato de Barba Branca, o seu amante secreto que não escondia um sorriso matreiro vendo-a nervosa daquela maneira.

Os cabelos de Olíria pareciam uma rocha de repente transformada em névoa escura que o vento não poupava à força dos seus músculos invisíveis. Sempre lhe parecera que o vento possuía músculos enormes, como D. Afonso Henriques. A partir daquela noite, já não seria virgem. Se, contra todas as previsões, Thomas não conseguisse fazer amor com ela, ou se alguma coisa o impedisse de aparecer, Olíria estender-se-ia na cama, abriria as pernas na direcção da janela e suplicaria ao vento que a desvirginasse, que a possuísse na maior das liberdades.

Mas Thomas cumpriu. Passavam uns três minutos da hora prevista quando ela ouviu gemidos em baixo no quintal. Alguém estava a puxar pela corda dependurada na janela. Foi ver. Era Thomas. Estava bastante escuro lá fora, mas conseguiu ver que ele vinha completamente vestido de branco. Seria aquele o uniforme de gala de D. Afonso Henriques? Não lhe pareceu. Porque nas suas mãos não se via a espada medonha. Thomas limitava-se a agitar os braços ao sabor do vento e mais nada. Olhava para a janela de Olíria e dizia:

Voltei à vida! Eu estava morto e ressuscitei!” Depois, gemia, gemia muito. Olíria pensou que aquela expressão lhe era familiar. “Eu estava morto e ressuscitei!...” Seria um extracto da História de Portugal? Talvez com essas palavras ele estivesse a querer convencê-la de que era o verdadeiro D. Afonso Henriques. Se estava morto e havia ressuscitado, isso queria dizer que estava na plena acepção das suas forças e, portanto, ela devia afastar todas e quaisquer possíveis dúvidas, preparando-se psicologicamente para não resistir quando chegasse o momento de fazerem amor. Olíria pensou que talvez por isso ele não trouxera a espada. Queria provar-lhe que era forte em todos os sentidos e que a podia dominar apenas pelo discurso. Olíria dissera-lhe para subir, pois esperava-o há horas. Mas ele insistia que voltara à vida, que estava louco por Olíria, só que não conseguia alcançar a janela, pedindo-lhe, por isso, que o viesse buscar!

Só quando ela habituou os olhos à escuridão reparou que Thomas não envergava qualquer fato branco. Estava enfaixado como se tivesse acabado de sofrer um acidente em que todos os membros do corpo tinham sido fracturados em várias partes.

Eu sou Lázaro!”, gritou Thomas desesperado. “Sou o irmão de Marta e Maria. O amante delas foi visitar-me ao túmulo e devolveu-me a vida”. A seguir, Thomas pôs-se a gemer confrangedoramente.

Olíria não quis ouvir mais nada. Recolheu ao quarto, deitou-se de costas na cama, abriu as pernas para o vento tresloucado que entrava pela janela aberta e entregou-se-lhe.

O vento fez tudo o que estava ao seu alcance para a satisfazer e foi suficientemente cortês para trazer os gemidos de Thomas até à sua cama. Para que ela não se sentisse completamente defraudada. Olíria sentia cócegas nas pernas. Mexia-se, levantava a bacia e deixava-se acarinhar pelo vento, que se estendia sobre ela, abraçando-a e pondo os seus instintos em fogo como as crateras dos vulcões. Faltava-lhe apenas o querer, a decisão, a garra para a penetrar. Olíria desistiu. E ficou ainda acompanhada pelos gemidos de Thomas, que repetia sem parar que era Lázaro, o irmão de Marta e Maria...







XX



Jusa não entendia porque haviam as pessoas de se entreter a falar sobre o terrorismo quando o verdadeiro problema que se punha era a fenda no quintal da sua casa, que ameaçava alastrar às redondezas. Sentado sob a laranjeira, enquanto mirava a fenda recém-aberta no solo arenoso, interrogava-se sobre se haveria alguma relação entre a fenda e o terrorista. Com certeza não iriam tentar convencê-lo de que aquela era obra de um terrorista. E porque razão a fenda haveria de ter sido aberta no seu quintal? Jusa nada tinha contra os terroristas. E uma fenda era sempre e só uma fenda. Que ele soubesse, os terroristas só gostavam de assaltar bancos e embaixadas. No seu quintal, não havia dinheiro nem diplomatas escondidos. Além disso, nos últimos tempos, não se tinha dado conta de nenhum homem com cara de terrorista. Como teria o povo chegado a tal conclusão? Porque seria que de um momento para o outro toda a gente começara a falar de terrorismo se nada havia acontecido que justificasse a presença desse tipo de pessoas por ali?

Jusa coçou a face com a mão grossa e pensou no interesse da fenda que se abrira no seu quintal.

Restava saber se as zangas da terra iriam ficar por ali ou se apareceriam outras fendas. Da sua parte, que poderia fazer? Como poderia opor-se ao curso natural das coisas? Seria uma pena se a sua laranjeira fosse levada para o abismo, em caso de a terra vir a desabar. Não necessariamente pelas laranjas. Porque, na verdade, aquela árvore só dava frutos de anos a anos. Nem Jusa tinha a certeza de que se tratasse exactamente de uma laranjeira. Esse fora o nome que lhe dera. De tempos a tempos, dava um fruto de cor azulada, talvez por estar próxima do mar, que lhe permitia essas leviandades procriadoras. Jusa sempre gostara de laranjeiras. Por razões familiares. Um seu bisavô possuía umas quintas onde se dedicava apaixonadamente ao cultivo de laranjeiras. A árvore no quintal de Jusa era uma homenagem ao passado.

Naquele dia, Maida tinha saído especialmente cedo. Para onde teria ido? Oxalá não se envolvesse em confusões por causa do terrorista. Então, Jusa lembrou-se que a mulher devia estar na igreja a rezar alguma novena pela conversão do Mundo. Jusa imaginava a igreja repleta de gente a orar e bater no peito com medo dos terroristas. O negócio das almas andava mau para o padre. Agora, porém, a situação financeira da paróquia poderia inverter-se radicalmente. Os cofres do templo ficariam a abarrotar. Como seria que o dinheiro que se dava à igreja podia influenciar uma situação de perigo real para a população? Seria que Deus recebia alguma percentagem do dinheiro que os crentes deixavam na igreja? E como enviaria o padre os cobres para o paraíso? Por correio?

Desde que Olíria se fechara no quarto Jusa notava que as finanças da casa estavam mais equilibradas. A filha já não lhe pedia dinheiro para o cinema, nem para o autocarro, nem para os restaurantes, nem para as saídas nocturnas.

Mas tinha saudades dela. Nesse instante, olhou para trás, para a janela do quarto de Olíria e viu que ela prontamente se afastou. Como se o olhar dele a tivesse empurrado para dentro. Teria Olíria alguma coisa contra ele? Seria possível que ainda se lembrasse? Ou adivinharia os seus pensamentos? Condená-lo-ia por nunca lhe ter contado nada sobre a vida de Maida? Ele não era a pessoa indicada para lhe falar no assunto. Maida é que devia ter tomado a iniciativa. Não o fez. Portanto, Jusa não tinha culpas no processo. Ele próprio, quando soubera do tipo de vida que Maida levava antes de casar com ele ficara tão surpreendido que decidira ausentar-se por uns tempos. Fora viajar. Atravessara a Europa, de Portugal até Itália. Para esquecer os problemas. Olíria já tinha uns anitos, então. Jusa só viera a saber o que se passava com Maida anos depois de terem casado. No tempo em que esteve de viagem não falou a ninguém do seu caso. Conheceu pessoas, aprendeu o iataliano, andou com mulheres. Mas recusou ligar-se sentimentalmente a quem quer que fosse. Houve uma amiga do Peru que o deixou com a garganta aos pulos. Entregava-se toda. Mas quando Jusa se preparava para lhe saltar em cima ela desatava aos gritos, dizendo que não queria, que não e que não!, que deixava de gostar dele se lhe fizesse alguma coisa contra a sua vontade. Mas Jusa sabia que, se não tivesse recuado, ela teria ficado ainda mais sua amiga. Faltou-lhe a paciência, porém. E deixou de a procurar. No entanto, guardou para sempre a recordação dos seus cabelos impressionantes de negrume azulado. Eram mais escuros do que a noite e sedosos como os de uma égua de raça. As pernas rijas sem serem musculosas. Os olhos fundos e negros como dois túneis brilhavam de metal negro, um metal macio e flexível. Ouvia-se dizer que Jusa dera um filho a uma italiana. Ele não sabia de nada. Talvez Maida tivesse recebido uma carta, um dia, e lha tivesse ocultado depois de ter acesso ao seu conteúdo. Se assim fora, percebia-se como a notícia tinha sido espalhada. E passou então a correr o boato de que Jusa era um valdevinos. O que terá contribuído para abafar os rumores que corriam sobre a vida íntima de Maida. Dizia-se que essa italiana, mãe da pretensa filha de Jusa, viera para Portugal à sua procura. E que acabara por ficar a residir em Lisboa. Mas Jusa não acreditava. O povo inventava coisas. Era tempo perdido dar ouvidos a boatos. As pessoas não evoluíam porque estabeleciam relações arbitrárias entre as coisas. Assim, ele era um estróina e cabeça no ar, enquanto Maida era uma santa só porque estava sempre na igreja, apesar de toda a gente saber que Olíria era apenas filha de Maida. Mas Jusa gostava de Olíria como se ela fosse sua filha. Amava-a sem limites. Tinha saudades dela. Sabia que Olíria o amava do mesmo modo. Por isso, conformava-se com a situação.

Até era possível que Maida sentisse ciúmes ao ver que Olíria sempre estivera ligada a Jusa.

O mar estava calmo como uma lagoa, atraindo os olhos de Jusa para lá da fenda no quintal. Havia dias em que não sentia vibrar a terra, assustada pelas arremetidas das ondas. A partir de agora, quando o mar embravecesse, era quase certo que a terra não resistiria. Tudo estava em risco de desabar. Quantos segredos não iriam com a terra para o mar. A memória das coisas e das pessoas. Os desejos frustrados, os momentos de alegria, os sonhos, as rivalidades, os apelos dos corpos...









Sangue






XXI



Voltando as atenções do povo para o homem do jornal e para a miúda, na opinião de Nemo, ficaram todos com a tarefa facilitada. Thomas fora engenhoso ao estabelecer a relação entre esse indivíduo e a fenda no quintal de Olíria. Assim, ficava arrumado o assunto da casa de banho. O homem do jornal fora o único que estivera à beira de os apanhar em flagrante. A ele, Nemo, não. Mas quase agarrara Thomas e Vabor. Sabia-se lá se não teria percebido o esquema deles e se não viria a tomar alguma atitude. Deste modo, ficara com a fama de ser terrorista. E nem a miúda escapara ao boato.

Nemo ria interiormente ao pensar em como um pacato cidadão de Lisboa fora promovido a terrorista com tanta rapidez e eficácia. Olhou para Vabor, que estava sentado à sua direita. Era um pobre diabo que raramente abria a boca para dizer coisa que valesse a pena. Há anos que andava louco por Olíria e nunca se atrevera a abordá-la. De que lhe valia semelhante retraimento?

Thomas já ia no terceiro café consecutivo. Devia estar com medo de perder a excitação. Olíria atirara-se a ele vezes sem conta e o palerma arranjara sempre as desculpas mais bizarras. Ora estava mal do estômago, ora inventava outro pretexto qualquer. Era claro que não tinha estofo para ela. E então dizia que daquela vez em que tinha combinado ir a casa de Olíria às duas da manhã, que havia desatado a subir a corda dependurada na janela e que ao pôr uma das mãos no parapeito ela o havia agredido com um sapato tendo logo a seguir desprendido a corda. E ele caíra de costas de uma altura daquelas como um pássaro atingido em pleno voo. Essa foi a explicação que Thomas, enfaixado em mil e uma ligaduras, deu quando encontrou Nemo nessa noite por volta das três da madrugada. Onde tinha ido ele fazer o curativo? A Lisboa, impossível. Não poderia estar de volta às três. E o farmacêutico local nem por sombras lhe teria aberto a porta. Um dia, Thomas pediu a Nemo que lhe comprasse uma espada em Lisboa. Das maiores e verdadeira. E nunca explicou para que pretendia semelhante coisa. Depois é que se veio a saber. Nemo achava que ainda ninguém tinha conseguido seduzir Olíria. Ele teria sido aquele que esteve mais próximo de concretizar tamanha proeza. Bem tentara. Feza tudo para que o esquema não falhasse. Comprou uma garrafa de uísque das melhores e foi para a adega do pai esperar que ela passasse depois das aulas. Nemo conhecia bem o trajecto que Olíria costumava seguir para casa e calculou que passaria por ali cerca das quinze horas e cinquenta e cinco minutos. Sem falhar um segundo em relação ao previsto, abriu a porta da adega e fechou-a atrás de si, simulando estar de saída. Procurara mostrar um aspecto de grande indiferença e fazer-se distraído. Fingira até que não a via, mas sabia muito bem que ela estava a poucos metros dele. Olíria reagira logo como ele esperava: “Olá, Nemo, hoje não ligas nenhuma...”.

Ele detivera o passo e agira como se tivesse reparado nela só naquele momento. Esforçara-se por não mostrar interesse no encontro, mas voltara para a porta da adega e convidara-a a entrar por uns momentos.

Olíria acedera sem hesitação. Conheciam-se desde pequenos, e ainda que não fossem amigos íntimos, tinham confiança um no outro para estarem juntos em qualquer sítio. Nem que fosse pela simples razão de Nemo ser bastante próximo de Thomas.

Era Primavera, a adega cheirava a bolor e ambos se tinham sentado em dois cestos de vimes voltados ao contrário, pondo-se a conversar sobre banalidades. Havia que gerir da melhor forma possível uma ocasião tão desejada como aquela.

Ao terceiro copo, Olíria já estava muito corada e tinha os olhos a brilhar como estrelas. Colocou livros no chão e empurrou o cesto para junto da parede, contra a qual se encostou, enquanto semi-abria as pernas.

Nemo não esteve com meias medidas. Avançou, levantou-lhe a saia sem lhe dar tempo de pensar, estendeu-a no chão e preparou-se para o ataque final.

Olíria começou por não resistir como se ignorasse o que estava a acontecer. Quando Nemo ainda estava atarefado a abrir o fecho das calças, ela disse que o chão estava muito frio e que se poderia constipar. À falta de uma manta ou de um cobertor, Nemo, então, lembrou-se dos tonéis de vinho e propôs que fizessem amor dentro de um deles. Um tonel de forma oval era o espaço perfeito para uma relação amorosa, além de que a escuridão os protegeria por completo. Nemo não teve dúvidas de que daria a melhor conta do recado.

Olíria quis que Nemo fosse o primeiro a entrar pela portinhola do tonel, a fim de se certificar de que não havia alguma ratazana lá dentro.

Ele obedeceu. E as complicações começaram. Estava ele já muito bem instalado no interior do tonel quando Olíria veio com a história de que tinha medo de atravessar a portinhola. O espaço era muito estreito e ela podia magoar os seios. Depois, pôs-se a dizer que o cheiro a vinho lhe dava vertigens. Por isso, Olíria sugeriu ficar fora do tonel e Nemo lá dentro.

Ele não estava a perceber nada. Ela convenceu-o a pôr o instrumento fora da portinhola para que ela se encarregasse do resto. Nemo voltou a obedecer. Olíria pôs-se a acariciar-lhe o pénis com as mãos macias. A seguir, fez qualquer coisa que provocou nele o maior prazer da sua vida, deixando-o com os olhos revirados na escuridão do tonel. Deu-lhe a sensação de estar dentro de uma flor de seda molhada. Não muito tempo depois, quando ela se apercebeu de que ele estava no máximo da excitação, deu-lhe uma tal dentada nos testículos que ele quase desmaiou. Pensando que ela lhe arrancaria o órgão, desatou a gritar. Até que ela o libertou e disse muito alto que a sua pila era a mais pequena que alguma vez tinha visto na vida.

Olíria acabou por fechar a portinhola do tonel, deixando Nemo lá dentro a contorcer-se de dores. Poucos minutos depois, Nemo viu que ela retirou a tampa do orifício superior do tonel e pensou que ela apenas lhe estava a dar uma oportunidade para respirar. Todavia, Olíria ainda não estava satisfeita. Por isso, deitou a vazar água para dentro do tonel. Atónito, Nemo suplicou-lhe que parasse, que tivesse dó dele, que não fizesse uma tal loucura.

Olíria, porém, só atendeu os seus pedidos quando calculou que o tonel já estava cheio de água. Nemo iludiu-a, calando-se e gorgolejando como se estivesse prestes a afogar-se.

Pensando que Nemo já não fazia parte do mundo dos vivos, Olíria foi-se embora. E ele recomeçou a gritar para que o viessem salvar. Horas mais tarde, um grupo de pessoas, entre as quais se contava Thomas, entrou na adega e socorreu-o. Nemo agradeceu a ajuda e desculpou-se dizendo que era sonâmbulo, por isso provavelmente se fechou dentro do tonel, pensando tratar-se de uma gruta pré-histórica, onde vivia uma mulher de beleza inigualável. Então, viera alguém que se pusera a encher o tonel de água ignorando que ele se encontrava lá dentro. Ao ouvir os seus gritos, devia ter pensado tratar-se do diabo, desatando a fugir. Todos compreenderam as explicações de Nemo e foram às suas vidas.

Nemo pediu a Thomas, porém, que ficasse com ele. Precisava de lhe falar. Quando ficaram a sós, Nemo perguntou a Thomas se queria ver Olíria. Ele ficou eufórico e respondeu logo que sim.

Nemo explicou-lhe que, antes de tudo, devia entrar para o tonel. Olíria estava ali perto e entraria depois. Estava envergonhada. O seu problema era a timidez. Mas estava na disposição de fazer tudo o que ele quisesse. Nemo ficaria de fora a vigiar qualquer eventual intromissão.

Thomas não quis dar parte de fraco na frente de Nemo e entrou mesmo no tonel. Sabia que Olíria o amava.

Vendo Thomas no interior do tonel, Nemo não hesitou em fechar rapidamente a portinhola, tal como Olíria lhe fizera. A seguir, encheu o tonel com água, sensivelmente até metade. Por estranho que pareça, Thomas nunca se queixou. Nem se lhe ouviu um gemido, o que fez com que Nemo receasse que ele se tivesse afogado em tão pouca água.

Preocupado com o silêncio do amigo, abriu a portinhola e deixou correr a água para uma vasilha. Mas Thomas continuou mudo como uma campa de cemitério. Quando Nemo já se preparava para ir em busca de auxílio, ouviu-se de repente a voz de Thomas dizer: “Desvia-te que vou saltar! Aí vou eu. Sou uma pulga lunar...”

Nemo não se deu ao trabalho de ficar ali por mais tempo. Deu meia volta e desapareceu. Chegado a casa, fechou-se no lavatório a examinar os testículos. Ficou em pânico. Para além da ferida que Olíria lhe fizera, notou que um dos testículos estava mais pequeno que o outro. Não teve coragem de ir ao médico nem de contar a ninguém o que lhe acontecera. No dia seguinte, Olíria fechou-se definitivamente no quarto.







XXII



Nino sentiu o vazio sob os pés e todo o seu corpo no ar completamente desprotegido. A noite pareceu-lhe subitamente mais escura do que poucos segundos antes quando estivera em cima do rochedo. Procurou reconhecer-se na queda e manter o corpo em equilíbrio. Sabia que só umas folhas rasgadas de tempo o separavam do mergulho nas águas frias. Olhou para os seus pés e viu o céu carregado de nuvens espessas e brutas. Por cima da sua cabeça era o mar, com ondas a rebentar desabridamente contra as rochas na vertical. Não havia nada a que se agarrar. Nino apertou os dentes, entreabrindo os lábios. Pensou que aquele sorriso forçado era perfeitamente ridículo. Como recuar no tempo se não havia espaço que lhe valesse? Era a queda absoluta, pesada, imprevista, estilhaçando o escuro da vida. Estava por um fio. Um fio através do qual descia agora rumo às águas. Nem tudo estava perdido, no entanto. Ele era bom nadador. Mas havia a brutalidade do acontecimento. E a sua furiosa tentativa de perceber como fora possível os factos se terem precipitado daquela maneira.

Poucos momentos antes, ele havia saído de casa, deixando Ana prestes a dormir. Viera dar um passeio. E, como sempre, desde há muitos anos, pensara no suicídio. Para ser livre, o pensamento tinha de jogar aberta e desinibidamente com a hipótese do suicídio. Não como acto de desespero ou fuga às realidades, sim como uma decisão individual acerca da continuação, ou não, de uma vida que lhe fora indiscutivelmente imposta por outrem. A qualquer altura, a possibilidade do suicídio seria uma alternativa consequente. Mas Nino nunca chegara a preparar em pormenor a sua concretização. Porque essa hipótese não passava de uma alternativa teórica ao modo como encarava a vida.

Naquela noite, Nino caminhou na direcção dos rochedos mais altos e perigosos que conhecia na zona. A noite não deixava passar a menor claridade por entre as nuvens inchadas e acorrentadas umas às outras. Nino conhecia razoavelmente o percurso. Não era a primeira vez que o fazia. Se um dia viesse a suicidar-se, seria certamente naquele local. Por razões que tinham a ver com o coração. Queria ter a noção mais exacta possível de como reagiria momentos antes de um eventual suicídio. Deixara os documentos e o relógio de pulso em cima da mesa de cabeceira.

Ao atingir o extremo da rocha, Nino olhou para baixo. Foi com dificuldade que dominou a vertigem. Fechou os olhos por uns segundos e recuou dois passos. Queria estar seguro de que naquela noite não poria termo à vida. Mesmo assim, decidiu voltar ao ponto mais avançado. Nada tinha a temer. Aquele não era o momento escolhido. O facto de estar ali nada tinha a ver com os seus raciocínios existenciais. Queria conhecer-se melhor. E que outro método mais apropriado do que uma encenação de suicídio através da qual poderia avaliar as suas emoções no momento derradeiro de ruptura com as noites e os dias?

Ouviu sibilar. Muito perto de si. Sentiu um calafrio. Foi incapaz de pensar com rapidez. Antes de ter tempo de descobrir o que se passava, viu-se rodeado por três, quatro, cinco vultos negros! Pareceu-lhe ver brilhar uma lâmina na mão de um dos homens. Nino nem tivera oportunidade de se afastar do abismo. Ficara espetado de surpresa no extremo da rocha. Para lá, era o vazio negro até ao mar.

A sua experiência ensinava-lhe que o diálogo seria praticamente inútil numa situação daquelas. Ainda por cima, não tinha qualquer ideia sobre a identidade dos seus interlocutores. Se falasse, nem o ouviriam. Ou aproveitariam as primeiras sílabas que proferisse para se lançar sobre ele. Se corresse na direcção das casas, Nino teria que passar pela barreira de dez braços tensos e dispostos a não ceder. Atirá-lo-iam ao mar num abrir e fechar de olhos. Restava-lhe ser ele próprio a atirar-se. Sabia nadar. O mar era bastante fundo naquela zona. Saltaria de modo a evitar as pontas dos rochedos. Preferia depender de si mesmo, da sua agilidade, da sua sorte, do que enfrentar o ódio aberto e armado de cinco desconhecidos.

Foi assim que Nino decidiu atirar-se, antes que os homens previssem a sua reacção ou tomassem qualquer iniciativa contra a vida dele.

Nino sentiu o vazio sob os pés. E todo o seu corpo no ar. Completamente desprotegido. A noite ficou de repente mais escura do que alguns segundos antes quando estivera firme em cima do rochedo. Procurou reconhecer-se na queda e manter o corpo em equilíbrio. Sabia que só umas folhas rasgadas de tempo o separavam do mergulho nas águas frias. Olhou para os seus pés. Viu um céu carregado de nuvens espessas e brutas. Por cima da sua cabeça havia o mar, subitamente, com as ondas a rebentar, desabridas, contra as rochas em vertical. Nino estendeu os braços e preparou-se para mergulhar. Havia conseguido um bom salto. Não encontrara qualquer bico de rocha no trajecto. Logo que chegasse ao mar, nadaria para um lugar próximo, onde o acesso a terra fosse facilitado.

Num abrir e fechar de olhos, sentiu-se enregelado. O seu corpo, como uma pena abandonada, mergulhou nas funduras da água esverdeada. Teve a sensação de bater com a cabeça em qualquer lado. Levou a mão a ver o que era. Não havia de ser grave. O choque não lhe pareceu violento. Tinha batido numa pedra, com certeza. Passou a língua pelos lábios. Soube-lhe a sangue. Tinha que nadar para terra quanto antes. Ao atingir a superfície, já quase não conseguia conter a respiração. Apercebeu-se de que tinha o rosto cheio de um líquido espesso e quente. Alguns minutos depois, e apesar das braçadas com que procurava alcançar terra firme, sentia um frio cada vez mais intenso. Os seus membros começaram a enregelar. Viu uma escuridão fulminante andar à sua volta. Ou seria ele a nadar em círculos na escuridão que as rochas gigantescas tornavam maior e mais assustadora? Sentia-se perder forças. As ondas não permitiam que o seu corpo enfraquecido tomasse o rumo desejado. Pareceu-lhe que tinha uma aranha enorme sobre a cabeça. Tentou sacudi-la. Mas a aranha tornou-se imprevistamente iluminada. Nino pensou que estava com visões. E nesse instante compreendeu que se encontrava numa estrada larga cujo fim não se vislumbrava. Sombras de pessoas atravessavam-na indiferentes. Pediu por socorro. Mas as sombras continuaram os seus trajectos alheias ao que se passava. Seria possível ninguém se condoer com a sua situação? Pegou numa pedra aguçada que estava ali mesmo à mão e atirou-a com violência na direcção de uma das pessoas-sombra que atravessava a estrada. Em vão. A pedra subiu no ar e desapareceu como um algodão de névoa. Atirou outras pedras, mas o efeito foi semelhante. Nenhuma atingiu o alvo. Até que a estrada ficou deserta e Nino se viu sozinho sem saber para onde ir. Era evidente que não chegaria a parte alguma. Para quê perder tempo? Abriu os olhos com dificuldade e reparou que o seu corpo tinha desistido. Não por vontade própria, mas por lhe faltarem as forças. Ao abrir a boca para respirar, bebia água salgada em grandes tragos, que o sufocavam. Ainda lançou um berro enorme, mas terá sido o último. Ninguém o poderia ouvir àquela hora numa estrada assim abandonada.

A estrada larga e sem fim começava a liquefazer-se, tomando a cor do mar à hora em que ele se atirara do rochedo. A estrada, agora, era o mar salgado, medonho, negro, no meio do qual a sua consciência progressivamente enfraquecia. Mais tarde, sentiu-se subitamente revigorado, mas logo a seguir afundou-se ainda mais. Ao ponto de só ter umas noções muito vagas sobre o que lhe estava a acontecer. Veio uma onda que o atirou contra a rocha. Nino abraçou o corpo que lhe restava com quantas forças tinha. Dobrou as pernas sobre o ventre. Sentiu calor. E perdeu-se no Verão como numa praia em fim de tarde.

No outro dia, quando a manhã clareou, o corpo de Nino seguia inerte na direcção das traseiras da casa de Olíria. Seguia à deriva, com a pele inchada, o corpo branco e meio despido, os membros sem vontade, abertos. A cabeça parecia uma enorme cereja insuflada de ar. Seguia no mar como um navio morto sem comandante.







XXIII



Olíria foi à janela de manhã cedo. Ia a apoiar-se no parapeito, mas deu um salto para trás. O Sol nascia e as nuvens tinham-se aproximado da casa, engalanando o céu de modo assustador. Ante os seus olhos, havia cores e formas infinitas. Como se tudo no planeta estivesse reflectido naquele amontoado de nuvens. Ovelhas, enormes agulhas de lã, gorros, aves pré-históricas de asas abertas e bicos rigorosamente delineados. Olíria quase teve medo de tanta beleza. Recompôs-se. Voltou à janela. Não queria perder aquela ocasião. Nem por um segundo. As ovelhas amarelas como se fugindo dos pássaros monstruosamente violetas. E os pássaros deparavam-se com agulhas negras de nuvens que lhes barravam a passagem. Os gorros vermelhos perfeitamente dependurados nas bocas das ovelhas, levemente descaídos como charutos de sangue. Para lá dos gorros, as nuvens repartiam-se ainda e o céu dava a impressão de ser o mar visto por dentro, com peixes verdes e róseos navegando rumo ao colo de Deus. Por isso, não se mexiam. Depois, surgiram os pescadores naquela manhã singular que Olíria testemunhou. Duas nuvens com formato de homens pescando ovelhas boquiabertas já sem gorros vermelhos nem charutos. As agulhas negras retorciam-se, viravam anzóis, abrindo caminho ao dia por entre aquela floresta de almas penadas, bichos, coisas, cores, bolas, melões e maracujás.

Olíria olhou para o mar, que estava ligeiramente ondulado por causa daquele frenesi que se via pelo céu fora. Encolheu-se ao pressentir que o mar se aprestava para embravecer. As ondas apareceram gradualmente encapeladas e a espuma explodia muito antes de atingir as pedras aguçadas. Olíria não queria que a festa acabasse. E viu uma árvore cor de laranja recortada no céu como a árvore de Jusa com frutos azuis. As agulhas reuniram-se, fazendo a árvore às vistas do Sol, com a ajuda de uma asa de pássaro pré-histórico e de uma quantidade de peixes róseos e verdes, que se agarravam às folhas fora de tempo, como se fossem anzóis. Se Jusa visse aquilo, rebentaria de contentamento, pensando logo que a natureza se dava ao trabalho de imitar a sua árvore. O Sol rasgava as nuvens, ganhava luminosidade. O que fazia esmorecer o festival daquela madrugada.

Era bom que aquele nascer de Sol não terminasse. Mas assim não aconteceu. Primeiro, desapareceram as folhas da laranjeira que haviam servido de peixes. Os dois pescadores guardaram as canas e partiram, de esperança frustrada. Os ramos das árvores, como num Outono antecipado, entortaram e desapareceram. As ovelhas foram em busca de outras pastagens. Os pássaros gigantes abriram os bicos e os seus membros desconjuntaram-se. As nuvens recuperaram a cor habitual e, apercebendo-se de que o mar embravecera, chamaram umas pelas outras, juntando-se em montes como o feno embravecido.

O Sol lançou sobre as nuvens raios de grande brilho com cabelos de metal incendiado. As nuvens desataram aos encontrões umas nas outras, ouvindo-se o barulho ensurdecedor das cotoveladas que davam. Aumentava o pânico entre as bolhas amontoadas de água. O tempo que separava os gemidos e gritos das nuvens era cada vez menor em relação ao aparecimento do raio. Se um dos raios trespassasse as nuvens e atingisse o mar?

Olíria pôs a cabeça de fora da janela e pediu com todas as suas forças que não mandassem mais cabelos luminosos. Pareceu dar-se uma trégua. Mas ainda Olíria não respirara fundo e um raio mais possante que todos os outros caiu no mar com ofuscante espalhafato, furando as nuvens como uma agulha impiedosa sem escrúpulos. As nuvens responderam em uníssono com um oooohhhh que se prolongou por vários segundos, desaparecendo em seguida como o galope de um cavalo a fugir do Demo. O que veio depois era de prever. O mar encheu-se de força e brutalidade. Foi dado o alarme à espuma das ondas e as águas responderam aos raios que caíam do céu, vindos do lado de lá das nuvens, com uma bravura que Olíria não tinha ideia de jamais ter visto em dias de sua vida. Há pouco tão mansas, as ondas, agora, erguiam-se descontroladas. Cresciam até mais não poder, corriam para terra, com a espuma vibrando à semelhança de uns chifres de touro acabado de picar. Ao chegar às pedras, dava-se o estrondo, com os respingos de sal subindo pelos rochedos para depois caírem como minúsculos flocos de neve sobre a laranjeira de Jusa.

A terra estava prestes a desabar, no pressentimento de Olíria, enquanto sentia as gotas de água correrem-lhe pelo rosto. Eram lágrimas que chegavam do céu caindo a rodos sobre a terra.

- Lágrimas - disse Olíria para que Barba Branca a ouvisse. - Estão a chorar as pobres nuvens trespassadas pelo raio.

A chuva fazia um ruído semelhante ao de muitos pássaros roucos batendo na pele esticada da terra. Levantaram-se pequenas nuvens de pó que a chuva transformou em poços de lama. Restava esperar pela reacção da fenda.

Olíria ouviu passos correndo na rua com as vozes. Aproximavam-se da sua casa. Era com certeza a população em alvoroço temendo o início do desabamento das terras. E se a casa sumisse dali a poucos momentos? Olíria ouviu a voz de Maida gritar:

- Vão-se embora para que não haja alguma desgraça!

Em resposta, pareceu-lhe ouvir vozes que rezavam.

Passado pouco tempo, Olíria ouviu os passos de Maida no corredor que dava acesso à porta do seu quarto. E os de Jusa logo atrás. Bateram à porta nervosamente.

- Sai daí, Olíria! - disseram eles. - Corremos o risco de morrer a qualquer momento.

- Abre, minha filha - disse Jusa. - Temos de partir quanto antes. A fenda não vai resistir a este temporal.

A resposta de Olíria foi um grito: - Não saio daqui. Se tentarem arrombar a porta, atiro-me da janela.

Maida e Jusa entreolharam-se. Sabiam que Olíria estava em condições para fazer o que acabara de dizer. O melhor era não voltarem a pedir-lhe nada.

- ...Para não a irritar - disse Jusa.

- Mas ela é minha filha - retorquiu Maida. - Não sentes por ela o mesmo que eu.

- Amo-a muito - respondeu Jusa, enquanto fazia sinais a Maida para que não lhe voltasse a pedir para sair.

- Quero salvar a minha filha - gritou Maida, rebentando num grande choro. Parecia à beira de uma crise de nervos. - Ela é só minha! - vociferou Maida. E virando-se para Jusa: - Põe-te na rua, desgraçado, que não te posso ver na minha frente! Não suporto mais esta situação. Vou rebentar com a porta.

Jusa pôs-se então entre Maida e a porta do quarto de Olíria, dizendo: - Se te opões à vontade de Olíria, tens de dar cabo de mim primeiro!

Maida ajoelhou, chorando copiosamente. Não se podia dizer que fingia, como fizera muitas outras vezes. Descaiu a cabeça para as pernas, enxugando as lágrimas ao vestido.

- Desaparece da minha vista - disse Maida. - Estou farta de ti. Não achas que trinta anos de vida em comum já são suficientes? Porque não falas agora nas unhas dos pés de Olíria? Diz aqui bem alto em que termos te preocupas com ela.

Jusa estava pálido. Encostou-se à porta do quarto de Olíria. De rastos, a seus pés, estava Maida banhada em lágrimas. Num curto intervalo de tempo em que ela aproveitou para respirar, Jusa notou claramente que a terra tremia.

Estaria Olíria consciente do perigo que todos corriam naquele momento? O vento batia contra as vidraças frágeis e as bátegas de chuva pareciam determinadas a estilhaçá-las a qualquer altura.

Olíria sentou-se no parapeito da janela, com os pés para o lado de fora. Cabelo molhado, em total desalinho e alvoroço, contrastando com a desusada serenidade do rosto. O vento levantava-lhe a camisa de noite e deixava-lhe as pernas descobertas com as gotas de chuva deslizando na sua pele macia. Olhou para os pés. Tinha as unhas limpas, finalmente. Não havia motivo para se preocupar. O vento era saboroso e quente. Com movimentos lentos de músculos, Olíria soergueu uma perna, depois a outra, retirou as calcinhas e enviou-as para cima da laranjeira de Jusa. O vento arrastou o estandarte branco como uma borboleta, fazendo-o cair sobre a árvore. A seguir, despiu a camisa de noite e desfez-se dela. Depois, colocou cuidadosamente os pés no parapeito da janela, segurando-se aos bordos laterais com as mãos. Ficou de pé, nua diante da tempestade. E disse:

- Demoraste, ó vento, mas esperei-te sempre! Aqui me tens. Sou tua, toda tua. Possui-me antes que a terra desabe.

Nesse momento, Olíria divisou um corpo no mar trazido pela maré da tempestade.

- Já não sou virgem! - gritou ela de imediato. - Ali está a prova. O vento levou o meu sangue para o mar. Aquele é o corpo do meu filho! Vejam. Fui emprenhada pelo vento. Sou a amante desse monstro invisível que me penetrou e me deu um filho, lançando-o ao mar. Crime! Mataram o meu filho.

Os gritos de Olíria eram estridentes como vidros partidos.

- Acalma-te - disse Jusa para Maida. - Em breve, tudo ficará resolvido.

Depois destas palavras, ouviu-se um estrépito seco, enquanto a chuva desabava sobre os telhados e a ventania levantava ondas loucas contra as rochas. Seguiu-se uma espécie de tiro de canhão sobre a casa. E a terra desprendeu-se, como estava previsto desde há anos, desde sempre.









Descoberta






XXIV



Ana não conseguia adormecer. Evasivo e estranho, Nino acabara de sair, dizendo que ia arejar. Só no outro dia ela encontrou o relógio e os documentos dele na mesa de cabeceira. Se soubesse, não o teria deixado ir só. Ana viu que, antes de sair, ele olhou as paredes absortas e deprimidas da casa. Mas achou melhor não argumentar com Nino daquela vez. Já bastava de discussões. Que Nino saísse e fizesse como lhe apetecesse. Ele deixara a casa por volta da uma da manhã.

Ana voltava-se na cama, fechava os olhos, chamava o sono, mas não conseguia dormir. Sentia o corpo envolto em humidade e calor. Pôs-se a olhar a parede em frente à sua cama. E viu um rosto enorme, disforme, a pairar diante dos seus olhos. Um rosto que troçava dela e que a ameaçava. Pôs-lhe a língua de fora, muito vermelha, fazendo com que Ana se encolhesse toda. Parecia de fogo aquela língua, ou de sangue puro. Mas Ana sabia que aquilo não passava de uma simples visão. Não estava a dormir, nem sequer sonhava. Porém, tinha medo. Era uma visão que assustava porque não fazia sentido. Ana pensou que podia haver um cadáver debaixo da sua cama. E não se cansou de vigiar, de olhar e olhar para debaixo da cama, a ver se os seus receios se confirmavam. Logo a seguir endireitava-se, temendo que o rosto suspenso na parede a devorasse. Depois, voltava a olhar para debaixo da cama, sempre à espera de que se lhe deparassem os metais brilhantes de algum caixão hediondo.

Quando os primeiros sintomas de claridade invadiram o quarto, Ana serenou. O rosto com a língua de fora desfizera-se na luz. E o cadáver, também. Mas nem por isso adormeceu. Pôs-se muito direita na cama, com a roupa puxada para o queixo, de olhos abertos, a pensar na mãe. Já pouco recordava dela. Tinha uma ideia vaga do seu rosto moreno, do cabelo negro e pouco mais. Certo dia, a mãe partira e nunca mais regressara. Nino explicava que a mãe fora a Veneza tratar de negócios. Só que os anos tinham passado e a mãe não veio. Ana ficou a viver com Nino. Sabia que ele não era seu pai. Ela nascera em Veneza, para onde a mãe partira, enquanto Nino nunca saíra de terras lusas. E dizia que fora sempre um simples amigo da mãe, que conhecera quando Ana tinha três anos de idade. A mãe viera para Lisboa em busca do pai de Ana. Não o encontrou. Então, disse que ia a Veneza e que regressaria ao fim de uma semana. Nino também se mostrara aborrecido por a amiga nunca ter voltado conforme prometera. Mas, agora, Nino gostava de Ana como de uma filha. De Veneza, Ana recordava-se das ruas, dos labirintos aquáticos, perdidos na memória da mãe. Do pai, nada sabia. Nino nunca lhe soubera explicar o que se passava.

Ana adormeceu. Ao fim de umas horas, foi acordada por fortes pancadas na porta de entrada. Olhou o relógio. Passava do meio-dia. Foi abrir. A vizinha do lado deu-lhe a notícia. Ana sentiu as pernas tremerem e foi vestir-se à pressa. Saiu a correr, sem destino, na direcção do mar, onde o corpo de Nino navegava com uma flor de sangue na cabeça.

Ao passar em frente ao café de Quim, este chamou-a. Ela não ligou, mas alguns metros à frente era apanhada por ele e sentada na mesa do costume. Bebeu o copo de leite que lhe puseram à frente, desatando a chorar ao mesmo tempo. Só então se apercebeu de que estava completamente encharcada. Lá fora, chovia e trovejava. O vento parecia querer levar os telhados pelos ares. Pelo modo como Quim a olhava, via-se que já estava a par do que acontecera a Nino. O empregado sentou-se na mesa dela e fixou o copo vazio na mão de Ana. Aconselhou-a a não ir para a beira-mar. Ana olhou-o como se fosse aquela a primeira vez que o via. Quim sorriu-lhe e perguntou-lhe onde tencionava ela agora viver. Ana respondeu que não sabia. Já não tinha Nino, estava só. Não tinha mais ninguém no mundo. Quim disse-lhe então que vivia mesmo por cima do café, que Roque era seu pai e que, se ela quisesse, podia ficar a viver com eles. Ana não tinha por onde escolher.

- Não te aconselho a ficares com ela... - disse o empregado ao ouvido de Ana, que não percebeu a quem ele se referia.

- Com ela, terias uma vida negra - continuou Quim.

- Com ela quem?... - perguntou Ana.

- Maida, a amiga de Nino...

Ana nunca ouvira pronunciar aquele nome. Mas Quim explicou-lhe...

Ana sentiu a cabeça a arder e o corpo a tremer até aos pés. Poderia confiar em Quim? Com que intenções ele lhe revelara aquilo?

- Estás doente? Apanhaste chuva, um grande susto e um desgosto terrível.

Ante o mutismo de Ana, deu-lhe a mão e levou-a para o andar de cima. Ana sentia vontade de chorar por todos os poros. Quim apontou-lhe a porta da casa de banho, passou-lhe uma toalha lavada e sugeriu que tomasse um duche.

Ela acedeu sem palavras. Já pronta, saiu com o corpo envolto na toalha e viu que Quim se ausentara.

Abriu uma porta e reparou numa cama com alguns móveis. Devia ser o quarto de Quim. No quarto ao lado, Roque dormia de barriga para o ar, ressonando como um gigante rente às nuvens. Conhecia-o do café, por estar sempre com os olhos revirados para o tecto. Ana estendeu-se no sofá, onde havia uma manta. Desviou os cabelos húmidos da fronte. Tinha os lábios gelados e um nó na garganta. Puxou os joelhos para o ventre e deixou-se estar enrolada. Sentiu o corpo adormecer de cansaço, mágoa e esforço. Nino morrera e ela era Ana de Veneza, onde corre a água por entre as casas e as gaivotas brancas pousam nos cais à tardinha.

Nisto, ouviu-se uma voz muito alta que vinha da rua em baixo. Ana teria dormido? A chuva parara e o vento era agora manso nos telhados. Ana foi à janela espreitar o que se passava e viu um homem, no meio da rua, todo vestido de branco, que agitava os braços como um espantalho, impedindo a passagem do trânsito. Trazia um cravo na lapela e um laço preto no colarinho engomado. Apesar da sua calvície, puxava do pente que tinha no bolso de trás das calças e penteava-se no espelho imaginário da tarde cinzenta. O homem ria alto e fazia perguntas a quem passava. As pessoas paravam e olhavam-no, surpreendidas.

- Maida expulsou-me de casa - dizia ele. - Porque estão a olhar-me? Não lhes parece que estou apresentável? Revirei tudo de pernas para o ar e encontrei a carta! Maida escondeu-a de mim durante estes anos todos. Uma carta de Itália com a fotografia da minha filha. Adeus meus amigos! Vou para Itália. Nunca mais me põem a vista em cima.

Jusa estava exaltadíssimo. Pulava, rugia, espumava pela boca, fazia caretas, mas não conseguia adiantar muito mais. E arrancou dali para a estação de comboios, levando atrás de si alguns miúdos curiosos.

- Sempre foi maluco - comentou alguém que passava.







XXV



Certa vez, Roque estava em frente ao café, na companhia de Ana. Tornaram-se amigos depois de o velho lhe explicar o sentido profundo das acrobacias que as moscas faziam no tecto do estabelecimento. Roque defendia que, hoje, era já raro encontrar-se mulheres com pernas bonitas. Por isso, apreciava as pernas das moscas.

- Sabes como descobri a sua beleza? - disse Roque para Ana. - Em tempos, eu tocava violino. Ainda o tenho. Hei-de mostrar-to. Está guardado num armário, porque já não o uso. Perdi o engenho, desde que descobri a beleza das moscas encavalitadas umas nas outras. Mas toquei muito violino, antigamente, perante salas cheias que me aplaudiam em delírio. Arrancava às cordas os melhores sons, punha-me em bicos de pés, para que todos me ouvissem, sempre de olhos arregalados para o tecto. Eu não era daqueles que fecham os olhos para se fingirem muito concentrados no que estão a fazer.

E exemplificava ali mesmo como haviam sido os seus bons tempos de violinista, guinchando a imitar os clássicos e assobiando, contorcendo o corpo ao ritmo dos sons, sem esquecer o braço direito sempre em movimento para trás e para diante.

Quem passava, ficava a olhar, detinha-se uns segundos, e depois ia à sua vida.

Ana viu uma lágrima solitária deslizando na face de Roque. Mas o velho não se deixou impressionar: - Noutros tempos é que era. Hoje, já não toco nada de jeito. Passei a dedicar-me à observação das moscas, das suas pernas delicadas e sensuais. As moscas gostam de música, de boa música. Descobri-o no meu último concerto, quando a certa altura o público decidiu abandonar a sala. A culpa não foi minha. As pessoas é que fugiam como ratos envergonhados, algumas até esgueirando-se por baixo das cadeiras para não darem nas vistas. Fingi que não via, como era meu dever. E continuei a tocar. Apesar de perceber que o meu violino já nada dizia à sensibilidade daquela gente. Eram uns pretensiosos sem cultura que me abandonavam cobardemente. Para me concentrar, então, passei a fixar os olhos no tecto. Inspirava-me no que via. Teias de aranha, caruncho, ouro falso desprendendo-se aos pedaços. Depois, foi a surpresa: quando tocava as últimas notas da noite, com a sala já vazia e os contínuos aos gritos no bar, fui envolvido por dúzias de moscas que pousavam no meu violino e me aplaudiam zunindo numa festa medonha! As moscas, sim, apreciavam a minha música. Ah grandes moscas aquelas de antigamente. Sensíveis, cultas e despertas para a música de vanguarda. Foi a maior alegria da minha vida ver que as moscas captavam a mensagem do meu violino. Depois, pronto. Não voltei a dar concertos. Mas as moscas nunca mais me deixaram. Andam sempre atrás de mim. E fazem-me companhia no tecto do café.

Roque explicou, então, que decidira aproveitar a inteligência das moscas para outros fins. Estava a preparar um golpe de Estado! A situação no país era insustentável, não havia respeito, os políticos mentiam à boca larga, cada um se enchia o mais que podia. Ana que reparasse como a terra tinha desabado nas traseiras da casa de Jusa sem que as autoridades tivessem mexido um dedo para evitar a situação. Por enquanto, não houvera vítimas. Mas quem sabia o que se seguiria? E permitia-se que um vulgar cidadão fosse considerado terrorista e a seguir atirado da rocha abaixo?

- Andavas então com as armas escondidas numa pasta de cabedal? - disparou Roque para Ana, sem que ela tivesse tempo para reagir.

Mas as coisas não podiam continuar como estavam, na opinião do velho. Tinha-se chegado ao extremo da vileza. Aproximando a boca do ouvido de Ana, Roque adiantou: - O golpe está em preparação. Não tenhas medo. Sei que és das nossas. Tive notícias de Lisboa. Os meus contactos não falham. Tudo acontecerá num domingo cinzento, para não levantar suspeitas. Quem acredita que possa haver um golpe de Estado num domingo cinzento? Armas não nos faltam. Nino deixou-nos uma boa herança. Guardaste a chave da casa?

Ana respondeu que não havia armas em casa de Nino. Que nunca vira alguma à sua frente.

De qualquer maneira, Roque garantiu que o golpe estava em andamento. Nada o faria desistir. Era o maior sonho da sua vida. Depois de tudo estar consumado, nomearia Ana para um cargo importante. O que interessava era não desanimar. Seria num domingo cinzento, quando todos estivessem na missa. Padre Zacarias seria o primeiro a abater. A seguir, os membros do Governo, um por um. Distribuir-se-ia a riqueza pelos pobres e haveria salários iguais para todos.

- Sabes quem me traz todas estas notícias de Lisboa? - perguntou Roque.

- Vem cá, já te mostro. O velho entrou com Ana no café e apontou para o tecto, onde se viam dezenas de moscas, as suas fiéis amigas.

- Os organizadores do golpe pretendem que uma pessoa respeitável seja nomeada para a presidência da nação - disse Roque. - Ora, quem tem melhor condições do que eu para exercer o cargo? Logo que assuma o poder, ordenarei o fim dos desabamentos de terra. E tenho a certeza de que todos me obedecerão.







XXVI



Num domingo cinzento, viu-se muita gente de súbito a correr em direcção ao mar, onde ficava a casa de Maida. Seria o golpe ou mais um desabamento de terra? Do primeiro desabamento, a casa de Olíria escapara ilesa. Maida suportara o desgosto da morte de Nino e o marido desaparecera para Itália. Maida vivia só. Olíria resistia ao tempo de porta trancada.

A população juntou-se à porta da casa de Olíria. Cá fora, estava Maida, esbaforida, autoritária, senhora de uma voz inabalável. Os candeeiros da rua tremiam ante as suas palavras decididas e inspiradas.

- Um anjo entrou no quarto de Olíria - disse ela para a multidão que a rodeava.

- Eu bem tinha avisado - disse Roque - que era num domingo cinzento. Mas garanto-vos que o anjo não me tira o lugar...

- Olíria é uma santa - continuou Maida. - Foi visitada por um anjo de Deus.

E acrescentou que estava ela no corredor junto à porta do quarto da filha, quando de repente sentiu que uma força invisível a empurrava. Maida caíu redonda no chão, estonteada. Olhou para ver o que se passava. E então vislumbrou uma grande claridade branca que por pouco a não cegou. Ficou paralisada de medo, mas uma voz grave serenou-a, pedindo-lhe que não tivesse receio. “Sou um anjo do Senhor e venho aqui por causa da tua filha”, disse a voz. “Deus não a quer só e enviou-me para sua companhia!”

Depois, Maida viu uma bola de fogo, que atravessou a porta do quarto e se foi juntar a Olíria.

Seguiu-se um momento de silêncio e devoção. O povo ajoelhou e pôs as mãos, rendido ao discurso inflamado de Maida. Olíria era uma santa que, agora, estava amantizada com um anjo. Fora eleita entre muitas. A força estranha que tinha nos olhos era o sinal da sua beatitude.

A notícia da santidade de Olíria alastrou. A terra do milagre ganhou fama. Durante semanas e meses não se falou de outra coisa. Chegaram curiosos de toda a parte, que vinham em peregrinação pedir a bênção da santa. Doentes, coxos, cegos, acorriam dos mais longínquos e ignotos lugares, para que Olíria os curasse.

A casa de Olíria virou santuário, com velas acesas à porta. Rezava-se terços após terços e deixava-se avultadas ofertas em dinheiro. A voz do povo elevava-se em preces e as ondas baixavam o rumor das suas investidas contra as rochas.

Maida não voltou a ter dificuldades económicas. O seus planos resultaram em cheio. Enriqueceu ao fim de uns meses. Para receber condignamente o cada vez maior número de devotos, mandou construir uma capela ao lado da casa. Por acordo tácito, Maida passou a dividir os seus avultados lucros com padre Zacarias, que desde o início reconheceu a santidade de Olíria e lhe deu a sua bênção.

No lugar do milagre, os vendedores ambulantes encontraram o paraíso para as suas vendas. De tudo vendiam: cerveja, sandes, terços, crucifixos, estatuetas plásticas da virgem, pedaços dos vestidos de Olíria, frascos com água onde ela lavava os pés, pedaços de cabelo, pentes, corta-unhas, play-boys, estampas dos pastorinhos de Fátima, posters de Julio Iglesias e de João Paulo II, círios, tabaco americano, fruta da época, louça de Barcelos.

Olíria não tinha permissão de aparecer aos devotos. Continuava fechada no seu quarto, agora, por expressa ordem do anjo, que era ciumento e possessivo. Uma santa daquelas só enclausurada, de facto, dizia o povo.

Que rezassem, pedia Maida. As rezas seriam suficientes para conseguir a bênção de Deus.

Olíria nunca soube o que se dizia dela cá fora. Vivia alheada do mundo exterior. No entanto, pelas vozes, cânticos e preces, ter-se-á apercebido de que alguma coisa acontecia perto de sua casa. E Barba Branca também deve ter estranhado.

Olíria estava cada vez mais abatida e fraca aos olhos do velho que, por sua vez, entristecia, enrugava a fronte, distanciando-se e fazendo com que Olíria pensasse que ele já não se interessava por ela.

Maida deixava cada vez menos comida à filha. Olíria sentia-se descarnada, magra, suja. Tinha andado todo aquele tempo a delirar com a virilidade imaginária de um simples retrato. O velho era simpático, mas que garantias lhe dava para o futuro? Se estava calmo e quieto era porque se tratava de um retrato. Se fosse vivo, já a teria trocado por outra.

Barba Branca, ao fim e ao cabo, não passava de um homem como os outros. Aproveitara-se apenas da sua solidão.

Olíria imaginava que o seu corpo projectava raios vermelhos sobre o azul do mar. Para aconchego dos mortos que as ondas levavam para outros mundos. Tentava manter o equilíbrio, mas sabia que o isolamento a conduzira à beira da ruptura. Receou cair no escuro iluminado. Sentia-se dominada por uma força estranha.

Para Barba Branca, Olíria desistiria da sua aventura, mais dia menos dia. Ele via a impotência nos olhos dela. Via a desilusão.

E Olíria não esperou muito mais tempo para se dirigir à porta do quarto, bater e chamar por Maida e Jusa.

- Que desejas? - perguntou a voz de Maida do outro lado.

- Quero sair - respondeu Olíria. - Porque mudaste a fechadura da porta?

- Não te percebo - replicou Maida. - Estás aí muito bem acompanhada. Barba Branca é um anjo que te protege e dá bons conselhos. Foi Deus quem to enviou. Reconcilia-te com ele e deixa-te de ideias malucas. Que esperas dos homens, minha filha? São cruéis e egoístas. Todo o povo reza por ti e deposita as maiores esperanças no milagre da tua santidade. Sacrifica-te, Olíria. O sr. padre Zacarias não se cansa de referir o teu exemplo nas homilias de domingo.

Olíria deixou cair a cabeça junto à porta, os cabelos negros e oleosos como um rochedo a liquefazer-se sobre o soalho. O corpo tremia-lhe, tinha as mãos inertes, os ombros frágeis, a camisa de dormir enegrecida de suor.

Maida dirigiu-se à sala de estar, onde padre Zacarias se encontrava recostado numa das poltronas. De perna cruzada, saboreava um sumo de laranja especialmente preparado por Maida.

- Não se preocupe - disse ele. - Olíria é uma rapariga ajuizada. Tenho-a sempre presente nas minhas orações. Tenha confiança nos desígnios de Deus - e sorriu comedidamente.

Depois da morte de Nino e do desaparecimento de Jusa, o padre passara a gozar da maior intimidade naquela casa.

Maida sentou-se no braço da poltrona que padre Zacarias ocupava e desabafou: - Olíria só me dá preocupações.

  • A sua filha está entregue nas mãos de Deus - respondeu o sacerdote, enquanto arrotava e pedia desculpa. A mãe de Olíria descansou a mão no joelho do padre, respirando fundo.






XXVII



Ana não viveu muito tempo em casa de Quim. Uns meses bastaram para que a situação se tornasse insuportável. Quim apaixonou-se por ela. E deixou de dormir só de pensar que Ana passava a noite estendida no sofá. Espiava-lhe os movimentos por trás das portas, pelos buracos das fechaduras, por entre os móveis. Queria que ela fosse para o café ajudá-lo a servir às mesas. Proibia-a de sair à rua e de falar com Roque. Exigia-lhe constantes provas de amor. E pedia-lhe que garantisse que nunca o trocaria por outro. Prometia-lhe que, no futuro, faria dela uma grande mulher. Pediu que passasse a partilhar a cama com ele. Insistiu que o seu amor era puro, simples e belo.

Apesar de Quim ser um bom amigo, Ana não o amava. Estava-lhe grata por ter abrigo e mesa, mas não podia ir além disso. Começou a pôr a hipótese de regressar definitivamente a Lisboa. Talvez uma antiga vizinha de Nino a aceitasse em sua casa. Era preferível voltar para os braços do desconhecido do que ficar entregue aos desmandos de Quim. Porque, não muito tempo depois de lhe ter declarado o seu amor, o empregado de café começou a bater-lhe, dizendo que era daquilo que ela gostava. As suas permanentes recusas não pediam outra coisa.

Nessas alturas, Ana não se defendia. Estava habituada a tudo: viagens, novos rostos, estranhos comportamentos e manias. Como resistir a um empregado de café com um bigode daqueles? Ana temia que Quim entrasse noutras fases de paixão e lhe passasse a exigir coisas que ela não estava disposta a dar-lhe. Além do mais, havia Roque, que se julgava relegado para segundo lugar e que passou a disputar ao filho os amores de Ana.

Quim pedia que Ana fizesse amor com ele, prova máxima dos sentimentos dela e da sua gratidão pelo bem que lhe fazia. Mas Roque argumentava que tinha mais direitos porque era mais velho e fora ao ponto de lhe prometer um lugar no governo. Roque jurava a pés juntos que Ana o amava, respingando saliva para o bigode de Quim. E ameaçava pôr fogo à casa se Ana não fosse dele, só dele.

Como ninguém o ouvia, não tardou a cumprir a ameaça. Num sábado à tarde, vazou uma lata de petróleo sobre os móveis, encharcou os cortinados e a madeira velha do soalho. Depois, foi à procura de uma caixa de fósforos e riscou um, desatando a fugir pelas escadas abaixo. Foi colocar-se em frente da casa, do outro lado da rua, muito solene, a ver o fumo esguichar pelas janelas. Depois, pôs-se a fingir que tocava violino, cantarolando e guinchando com voz rouca.

Ana nem precisou de ser avisada. Com um arrepio, viu ao longe o concerto das chamas por entre o fumo embravecido, o crepitar dos objectos a arder, os caixilhos das janelas a desprender-se, os vidros a rebentar, a cal a derreter, a madeira a estalar.

Veio gente com baldes de água, a gritar, com medo de que o fogo alastrasse para outras casas.

Ana não perdeu tempo. Foi a correr para a estação. Era o momento de partir para sempre, antes que a encontrassem no meio da confusão. Meteu-se no primeiro comboio que apareceu e fechou os olhos para não ver mais nada. O fumo de novelos enraivecidos sobre a casa, ganhando altura e formas novas. Aves gigantes, ovelhas com gorros, peixes, agulhas de tricotar, os gestos endemoinhados do fumo negro sobre a casa. Os peixes correram para os ramos dispersos e transformaram-se em folhas. Uma árvore de fumo recortou-se no céu pálido. A paisagem era um sábado triste, prenúncio de um domingo cinzento. Todos os domingos eram cinzentos, com nuvens baixas, redondas, prontas a vazar o seu descontentamento. O musgo, as pedras aguçadas, os limos, a espuma, os rochedos na vertical, os corpos, a procura do equilíbrio na queda, a flor vermelha sobre a carne branca das gaivotas.

Ana olhou pela vidraça, limpou a poeira, os carris guincharam na curva apertada, onde tudo acabava.

Quando era criança, por volta dos seis anos de idade, Ana ouviu contar pela primeira vez uma história de sereias. Umas viviam em terra, disfarçadas, outras no mar, junto aos remoinhos de água. Dizia-se que as sereias tinham uma força estranha nos olhos, cantando para atrair pescadores e marinheiros, que depois possuíam nos seus palácios encantados no fundo dos mares. As sereias cantavam, com vozes trémulas, fingidamente delicadas, para avaliar a coragem e valentia dos marinheiros, que não resistiam aos seus apelos e se deixavam atrair pelos remoinhos de água. As noites eram de Lua nova, mas havia um manto de claridade pálida e intensa que se derramava sobre o corpo movediço das águas, aureolando as sereias e dando-lhes um ar de anjos desprotegidos.

Os marinheiros acorriam, desprevenidos, e perdiam-se para sempre nos funis do mar. Desapareciam, engolidos pela vertigem das sereias, que levavam os mais valentes para o segredo dos seus castelos. Os marinheiros gozavam eternamente as delícias das sereias, por entre corredores iluminados e grandes retratos antigos nas paredes plenas de fausto.

As sereias enfeitiçavam os homens. Cativavam-nos irremediavelmente. E eles, perdidos de amores por elas, lavavam a terra da memória.

Ana queria descortinar os segredos do mar. Queria penetrar o mistério das sereias. Por isso, juntou-se a um grupo de amigos, todos com cerca de seis ou sete anos de idade. Escolheram os mais valentões e decidiram fazer a experiência, indo à procura das sereias nos remoinhos de água. Construíram um barco de papel e quando veio uma noite de Lua nova atiraram-se ao mar, cheios de sorrisos aventureiros e prontos a deixar-se cativar pelas deusas dos oceanos. Como era a única rapariga do grupo, Ana ia disfarçada de rapaz, com um bigode pintado e os cabelos longos guardados num boné.

A noite estava calma. O céu redondo e negro. Só se ouvia o rumor do mar. Onde estariam as sereias? Ana e os amigos estavam sós, perdidos, sem bússola nem outros instrumentos de navegação. Tinham partido confiantes no instinto do seu barco de papel. Ana meteu um dedo na água e fez um remoinho, a ver se os palácios das sereias surgiam do mar esverdeado. Mas a sua ideia não resultou. Teriam as sereias adivinhado a farsa e recolhida, assustadas, aos seus castelos? Talvez. Porque as sereias nunca apareceram, mantendo-se ocultas na distância, onde não corria o tempo, nem a dor, felizes, com os seus marinheiros. Ao serem apanhados nos remoinhos de água, os marinheiros soltavam gritos na noite espantada. Davam berros de angústia e desespero. Esperneavam, debatendo-se com a fúria do sal. Com os cabelos espetados de susto, abriam muito os olhos para a claridade nocturna, como os mortos quando surpreendidos pelo movimento dos dias. Por isso, as sereias, esperavam, pacientes, durante tempos sem fim, até que surgisse algum marinheiro que, depois de engolido pelo mar, esqueceria tudo, dor, mulher, noivas, amantes, entregando-se nos braços de quem os amaria para sempre. Ou de quem o devolveria ao mar, caso não gostasse dos seus dotes. Deixando-o navegar, inerte e pálido, como um navio sem comandante ao sabor das correntes.

As sereias vigiavam o mar a toda a hora. Sempre à cata de marinheiros ou pescadores que navegassem nos seus barcos de papel, para os possuir sem limites, com a emoção de quem segue a aventura do sangue num écrã luminoso. O barco desfaz-se no sal. Os remoinhos de água engolem os corpos. O feitiço das sereias vence a distância e entra na imagem, que ganha vida, claridade, movimento. Silêncio. Luz branca.





FIM